quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Rádio Comunitária

Rádio Comunitária: uma ferramenta na democratização da comunicação
Meyrilane da Silva Gomes*

O Movimento de radiodifusão comunitária nasceu no bojo do movimento pela democratização da comunicação e da sociedade. Este, por sua vez, emergiu do conjunto dos movimentos sociais em luta pela transformação social no Brasil. E, como partícipes das redes de movimentos, em esfera mundial, estes atuam nos embates contra o projeto da globalização neoliberal.

De acordo com Ferraretto (2001) o processo de lutas sociais aqui no Brasil pela democratização da comunicação vem durando por quase duas décadas. Com argumentos de oposição à rádio comunitária os empresários do setor radiofônico dizem que as estações “clandestinas”, referindo-se à radiodifusão comunitária, interferem nos sinais das emissoras legalmente constituídas e nos sistemas de comunicação dos aviões nas proximidades de aeroportos.

A situação de antipatia com a Radiodifusão Comunitária foi tamanha que em novembro do ano de 1996 a Associação das Empresas de Rádio e TV (AESP) e o Sindicato das Empresas de Rádio e TV (SERTESP), ambas de São Paulo, lançaram uma campanha com o slogan: “Rádio pirata: só as autoridades não interferem”, daí percebemos como foram e ainda são ferrenhas as lutas sociais no processo da democratização radiofônica.

Segundo o Ministério das Comunicações o Serviço de Radiodifusão Comunitária brasileira foi criado pela Lei 9.612, de 1998, regulamentada pelo Decreto 2.615 do mesmo ano. Existem atualmente no Brasil 2.470 rádios comunitárias legalizadas, 1.200 em processos de outorga tramitando e cinco mil requerimentos.

A Radiodifusão Comunitária (RadCom) trata-se de um serviço de radiodifusão sonora em freqüência modulada (FM), de baixa potência (25 Watts) e cobertura restrita a um raio de 1 km a partir da antena transmissora. Podem explorar esse serviço somente associações e fundações comunitárias sem fins lucrativos, com sede na localidade da prestação do serviço. As estações de RadCom devem atender a uma programação pluralista, sem qualquer tipo de censura, e devem ser abertas à expressão de todos os habitantes da região atendida.

Ainda de acordo com o Ministério das Comunicações a finalidade dos serviços da RadCom é atender a comunidade onde esta inserida dando a ela a oportunidade da difusão de idéias, elementos de cultura, tradições e hábitos sociais da comunidade, oferecendo à mesma mecanismos de formação e integração, onde estimularia o lazer, a cultura e o convívio social. Dessa forma a RadCom prestaria um serviço de utilidade pública, integrando-se aos serviços de defesa civil, sempre que necessário, dando assim a capacitação dos cidadãos no exercício do direito de expressão, de forma mais significativa.

Esse tipo de rádio caracteriza-se por estar organizada a partir da prática da comunicação comunitária popular-alternativa , ou seja, por pessoas que fazem parte ou não nos movimentos sociais organizados, com um projeto pedagógico libertador, partindo do cotidiano dessas, contribuindo para que elas reflitam sobre a sua realidade através da comunicação feita por e com elas mesmas. Mas antes, é bom salientar que a comunicação comunitária é aquela que se organiza a partir do cotidiano de pessoas em uma determinada comunidade, independente de estarem ou não organizadas em movimentos sociais. Ela possibilita a expressão do cotidiano da comunidade fora dos padrões modalizados, gerando um processo de singularização.

É relevante dentro desse contexto, destacar a função social das rádios comunitárias. Para Meliani (1995), “os pequenos projetos de comunicação, quando localizados e integrados à realidade de suas comunidades, são capazes sim de produzir conteúdos de qualidade, garantir audiência dando respostas às necessidades da população”.

A enfatização de Meliani, sobretudo quanto às rádios comunitárias darem respostas às necessidades da população, lança-se para a amplitude do que se constitui como função social desse instrumento de comunicação, pois essas respostas são buscadas pela própria população que percebe quais são essas necessidades. Nesse contexto, a rádio comunitária teria por objetivo principal transformar o ouvinte em sujeito ativo e participante da comunicação, ele produziria a informação opinando sobre os fatos, abrindo assim a possibilidade de discussões ampla das problemáticas e características intrínsecas daquela comunidade onde se insere.

Para se ter a obtenção desse serviço de radiodifusão de acordo com Ferraretto (2001) faz-se necessário as seguintes recomendações:

1) O primeiro passo inclui a constituição de uma associação comunitária, que encaminha um requerimento ao Mistério das Comunicações;

2) A agência de Telecomunicações verifica, então, se a área de interesse faz parte da região de utilização do canal nacionalmente definido para o Serviço de Radiodifusão Comunitária (RadCom). Caso negativo, será indicada uma alternativa pela Anatel.

3) Constatadas as possibilidades técnicas, o Ministério das Comunicações publica, no Diário oficial, comunicado de inscrição para habilitação das entidades interessadas em prestar o serviço da mesma área solicitada ou em área com o centro deslocado em até 500 metros de origem.

4) A partir da data de publicação do Diário Oficial, decorre um período de 45 dias, em que todas as entidades interessadas devem encaminhar requerimento à Delegacia do Ministério das Comunicações, anexando a documentação necessária.

5) Caso somente uma entidade se inscreva, o Mistério das Comunicações expede a autorização para que a emissora passe a operar. Havendo mais de uma associação interessada e habilitada a prestar o serviço, o ministério tenta um entendimento entre elas, o que tem prazo de 30 dias para ocorrer. Caso isto não aconteça, a escolha acontece pelo critério da representatividade. Quem obtiver maior numero de manifestações de apoio à entidade ou integrantes da comunidade terá direito a operar a emissora. Concluindo que existe igual representatividade, a escolha ocorre em um sorteio.

6) Selecionada a entidade, esta deve encaminhar os dados técnicos e operacionais à secretária de radiodifusão em um prazo de até 30 dias, estabelecido pela SSR.

7) Estando tudo correto do ponto de vista técnico e jurídico, o Ministério das Comunicações publica o resumo do ato de autorização no Diário Oficial.

8) A emissora deve entrar no ar em um período de seis meses a contar da data de publicação do ato no Diário Oficial.

O ato de autorização da radiodifusão comunitária somente produzirá efeitos legais após deliberação do Congresso Nacional, nos termos do parágrafo único do art. 2º da Lei n.º 9.612, de 1998, publicada em ato competente. A autorização terá validade de três anos, permitida a renovação por igual período, se cumpridas as disposições previstas nesta Norma. A cada entidade será expedida apenas uma autorização para execução do RadCom.

É bom salientar que a emissora do RadCom operará sem direito a proteção contra eventuais interferências causadas por estações de Serviços de Telecomunicações e de Radiodifusão regularmente instaladas. Porém, caso uma emissora de RadCom provoque interferência indesejável em Serviços de Telecomunicações e de Radiodifusão regularmente executados, a Anatel estabelecerá o prazo máximo de 48 horas para a eliminação da causa da interferência e, não sendo esta eliminada, determinará a interrupção do serviço da emissora interferente até que cesse a interferência.

Uma outra exigência estabelecida às emissoras de RadCom é manter a Licença de Funcionamento de Estação permanentemente exposta num local visível, onde se encontra o transmissor. Essas emissoras cumprirão período de oito horas, contínuas ou não, como tempo mínimo de operação diária e sempre que a entidade pretender alterar o horário de seu funcionamento deverá comunicar o fato ao Ministério das Comunicações com antecedência mínima de cinco dias úteis da data de efetivação da alteração.

A entidade autorizada a executar o serviço de RadCom não pode estabelecer ou manter vínculos que a subordinem ou a sujeitem ao gerenciamento administrativo de qualquer outra entidade, mediante compromissos ou relações financeiras, religiosas, familiares, político-partidárias ou comerciais.

Com autorização da execução desse serviço radiofônico a entidade deverá manter disponível e atualizado o nome e o endereço residencial de cada um de seus dirigentes, para qualquer solicitação ou inspeção do Ministério das Comunicações, além de toda a programação veiculada na rádio ser gravada e mantida em arquivo durante as 24 horas subseqüentes ao encerramento dos trabalhos diários da emissora, devendo também ser conservados em arquivo os textos dos programas, inclusive noticiosos, devidamente autenticados pelos responsáveis, durante sessenta dias.

A instalação e funcionamento de uma estação de rádio comunitária sem a devida autorização são considerados crimes Federais, punindo o infrator com a prisão e a apreensão dos equipamentos. Essa penalidade é aplicada não somente ao proprietário da estação clandestina, como também a todos aqueles que, direta ou indiretamente, estejam ligados a essa atividade ilegal.

Uma outra questão que gostaríamos de trazer a nossa discussão sobre rádio comunitária é que o processo de uma democratização da comunicação dentro de uma comunidade, seja ela qual for, não é algo tão fácil assim. Uma comunidade é formada por uma variedade de entidades que têm suas próprias ideologias muitas vezes divergentes, onde reunir essa heterogeneidade de pensamentos num mesmo espaço em prol do mesmo objetivo é um processo de construção de trabalho árduo, gradual e continuo.

O processo de conscientização de comunicação comunitária deveria ser feito dentro das comunidades que possuem esse meio de comunicação, com tal trabalho teríamos um maior impacto dentro da relação rádio e comunidade, para que essa entenda a utilização desse instrumento de comunicação no atendimento a uma coletividade e não a um grupo especifico da comunidade.

Em suma, com essas observações teríamos a rádio comunitária atendendo o seu objetivo principal que é transformar o ouvinte em sujeito ativo e participante da comunicação, produzindo a informação, opinando sobre os fatos, abrindo assim a possibilidade de discussões das vontades daquela localidade, constituindo uma democratização real da comunicação.

Referência
FERRARETTO, Luiz Artur. Rádio: o veículo, a história e a técnica. 2ª ed. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 2001.

* Mayrilane da Silva Gomes é graduada em Comunicação Social, habilitação Radialismo, pela UFPB. (com revisão de HM)
Parte da monografia “Rádio comunitária: a reação da comunidade de São Rafael com sua rádio comunitária”, apresentada em 20/02/2008

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

História da Small Press

Jean-Paul Jennequin

Traduzido do francês por Henrique Magalhães

 

No número 2 de Comix Club, a respeito do zine americano You Come Too, Lenon anotava a importância da noção de small press para quem quisesse conhecer o trabalho de Jeff Zenick. Mas, o que significa exatamente este termo small press? Trata-se de fanzines fotocopiados? De auto-edição? De publicações de pequena tiragem? Podemos ver nela o equivalente do que se chama na França “editores independentes”? Tantas questões são difíceis de responder sem se retomar as origens.


Do que falamos? 

Small press é um termo inglês que podemos traduzir literalmente por “publicações de pequena tiragem”. É importante ressaltar que a palavra press é aqui um belo exemplo de falso termo, pois que não se trata de imprensa, mas de impressão. Quer dizer, de tiragem. Nos países anglo-saxões, o termo small press engloba tanto livros quanto revistas. Não é, aliás, exclusivo a história em quadrinhos, e se utiliza correntemente nos domínios da poesia e da ficção-científica. Nesses meios, a small press designa, em geral, livros com pequenas tiragens, impressos ou fotocopiados.

Na história em quadrinhos, os termos small press e small-press comics são utilizados para designar as publicações que vão do mini-comics (formato A6) de oito páginas fotocopiadas com cinco exemplares ao digest (formato A5) às vezes bem espessos. A questão do formato parece essencial: desde que se atinja o formato standard dos comics books (17 x 23cm) e no mais, desde que se abandone a fotocópia pela impressão, o termo small press não é mais utilizado. Fala-se então de independent publishing ou de alternativo (um termo utilizado sobretudo nos anos 1970-80). No entanto, os meios utilizados são por vezes os mesmos: Quando Jeff Smith lançou sua revista auto-editada Bone, em 1991, jamais fora considerado como um produto da small press. Inversamente, os primeiros oito números de Optic Nerve de Adrian Tomine, ou de Box Office Poison de Alex Robinson, pertenciam a esta categoria, pois se tratavam de publicações fotocopiadas no formato A5. Quando estas duas séries foram publicadas no formato revista (comic book), respectivamente por Drawn and Quarterly e Antartic Press, não mais se tratava de small press. Jeff Nicholson, quando lançou seu título Ultra Klutz no formato A5 em fotocópia fez small press. Quando, no decorrer de 1986, ele tira proveito do colapso passageiro das revistas em preto e branco para relançar um Ultra Klutz impresso, com capa colorida, formato comic book, ele não mais fazia small press. O que leva a crer que o uso da palavra small sugeria aos amadores de quadrinhos que um small press comic designava o formato e não a tiragem!

Fala-se de small-press comics nos Estados Unidos, no Canadá, na Grã-bretanha e na Irlanda, na Austrália e na Nova Zelândia. É desses países que trataremos neste artigo, a começar pela América do Norte, onde o fenômeno small press é o mais difundido.


A origem

O fenômeno small press nos Estados Unidos se coloca à direita do movimento underground dos anos 1960. Em 1967, Robert Crumb auto-edita o primeiro número de Zap Comix, comic book em preto e branco com capa em cores, escrito e desenhado inteiramente por ele. A utilização do formato dos comic books “normais” para publicar histórias em quadrinhos plenas de sexo, de droga e de violência arrasou. Os comix (com um x para lhes distinguir dos quadrinhos de massa) se multiplicam e recebem uma acolhida entusiasta. Um circuito de difusão paralelo, baseado principalmente nos head shops[1], permite vendas em nível nacional. Mesmo a auto-edição mantendo-se forte, as editoras se colocam no páreo, como The Print Mint, Krupp Comix Works, Last Gasp e Rip-Off Press.

No entanto, nos anos 1970, vários fenômenos vão reduzir e depois parar a expansão do underground. A inflação, de início, causada pela primeira crise do petróleo, impõe um grande aumento do preço do papel. Em seguida, uma decisão da Suprema Corte vai dar às autoridades locais a apreciação dos critérios que definam a obscenidade. Muitas prefeituras conservadoras vão se servir disso para fechar os head shops. Enfim, em paralelo aos fenômenos externos se produziu um fenômeno interno próprio a todo movimento editorial. Em efeito, após alguns anos durante os quais não importa quem podia publicar não importa o que, o setor underground se estabiliza. Para vender, só o fato de quebrar os tabus sobre a droga e o sexo não era mais suficiente. O leitor exige doravante um mínimo de competência narrativa e gráfica. A grande quantidade de autores revelados durante os primeiros anos ocupa o terreno e os novatos têm dificuldade de publicar. Simplesmente não há espaço.

Uma das soluções para o problema[2] é o recurso da auto-edição. Mas, para um jovem autor, imprimir sua própria revista, mesmo com uma tiragem de 500 exemplares, era muito caro. Por outro lado, um novo meio de reprodução começa a se tornar acessível: a fotocópia.

Surgidas no final dos anos 1960, as primeiras copiadoras comerciais não serviam em nada para uma utilização fora dos serviços de escritório. A propósito, elas utilizam um papel foto-sensível mais fino que o papel normal, e as fotocópias se desgastavam com o tempo: exposta à luz, a cópia se apaga ou o papel se amarela[3]. Mas, entre 1975 e 1980 aparecem novas máquinas utilizando papel ofício comum. O preço da cópia, ainda muito elevado na época – 1 franco a cópia na França por volta de 1980 – vai ser rebaixado com o aparecimento das lojas de fotocópia. Freqüentemente situadas na proximidade das universidades ou colégios, elas oferecem tarifas regressivas de acordo com o número de cópias efetuadas. Desse modo, o custo da cópia pode descer até a 0,25F ou 0,20F. No mais, as fotocopiadoras se generalizam também nas empresas e instituições.


A “coisa” que sai da copiadora!

O que se passa na França entre 1980 e 1985 chega aos Estados Unidos com alguns anos de antecedência. Os fanzines não tardam a ver qual uso se pode fazer dessa nova tecnologia: é praticamente o fim das produções mimeografadas. Para os autores novatos de HQ, a fotocópia oferecerá uma nova possibilidade: reproduzir instantaneamente uma HQ, mesmo a um número de exemplares muito pequeno, e isto por um custo mínimo. Os jovens autores para quem a publicação nos comix underground tornou-se difícil, talvez impossível, vão se voltar para o “mini-comic”.

Dois formatos se impõem rapidamente: o “digest” (formato A5, quer dizer um A4 dobrado ao meio) e o “mini-comic” propriamente dito, no formato A6, geralmente uma simples folha A4 dobrada duas vezes, o que dá um mini-livro de oito páginas. Este último formato oferece uma vantagem suplementar: um mini-comic pode ser enviados de um lado a outro dos Estados Unidos por um custo mínimo, o que não é de se desprezar, pois a crise do petróleo também fez aumentar as tarifas postais.

O boletim Comix Wave, lançado em 1973, faz o registro de numerosas publicações que se inscrevem no contexto do underground. No fim dos anos 1970, começa-se a utilizar o termo newave comix para designar as pequenas publicações autoproduzidas. O termo faz evidentemente referência ao vocábulo “new wave” utilizado na música. O responsável de Comix Wave, Clay Geerdes, serve de mentor a toda uma geração de jovens autores. Não contente de apresentá-los em seu boletim, ele os publica também em seus mini-comics antológicos, Baby Fat e Fried Brains.


Os anos Newave 

A onda de publicações small press vai se ampliando durante os anos 1980 ao mesmo tempo em que a fotocópia barata se espalha. Em 1985, o fenômeno torna-se suficiente para justificar uma série de artigos na revista norte-americana The Comics Journal. Lançada de março a setembro de 1985, com os números 96 a 102, a “Newave Comix Survey” (enquete sobre os newave comix) de Dale Luciano traça um panorama do mundo da auto-edição: após um artigo de apresentação do fenômeno, o autor descreve o trabalho de um certo número de autores classificados em ordem alfabética. Entrevistas de personalidades tais como Clay Geerdes ou Gary Panter vêm completar esta enquete. É interessante notar que Luciano declara, em seu artigo de apresentação, ter tido a idéia de um artigo sobre o fenômeno newave comix em julho de 1981, prova que ele já existia na época como um fenômeno editorial merecedor de uma enquete.

Ao menos um dos autores mencionados na Newave Comix Survey iria ter, sem querer, um impacto determinante sobre o desenvolvimento da small press. Trata-se de Kevin Eastman, então com 21 anos de idade, e que acabara de publicar[4] com seu parceiro Peter Laird o primeiro número de uma ambiciosa revista em preto e branco: Teenage Mutant Ninja Turtles. O sucesso exponencial das Tartarugas Ninjas provocará, entre outras coisas, um repentino interesse especulativo sobre as revistas em preto e branco.

Em 1986 e 1987, assistimos a um verdadeiro boom dos comix em preto e branco. Qualquer jovem autor com algumas centenas de dólares no bolso pode imprimir sua revista e esperar vender alguns milhares, no circuito das livrarias especializadas. O sucesso do primeiro número de Teenage Mutant Ninja Turtles com uma tiragem de apenas 500 exemplares a transformou numa peça de coleção super valorizada num espaço de poucos meses. Todo mundo, tanto os livreiros quanto os autores, espera que o fenômeno se repita com outro título. Até então, os quadrinhos em preto e branco eram essencialmente os comix underground e alguns independentes (que se dizem ainda alternativos) como Warp Graphics, editor de Elfquest, e Aardvark-Vanaheim, de início editor de apenas Cerebus the Aardvark, mas que abriu suas portas a outros “quadrinhos de autor” como Ms Tree e Neil the Horse.

O boom especulativo será curto, mas vai, no entanto, permitir a passagem ao profissionalismo de alguns autores advindos da small press como o canadense Chester Brown e o britânico Eddie Campbell. Vai também dar uma certa publicidade ao terreno movediço de onde saíram numerosos autores que o público das livrarias especializadas descobre nessa ocasião, os mini-comics. Uma publicação inteiramente dedicada à small press, Small Press Comics Explosion alcança, mesmo que brevemente, uma difusão internacional por intermédio da rede de livrarias especializadas. Os números 6 a 9, lançados entre julho de 1986 e março de 1987, dão um apanhado fascinante da cena small press da época[5]. Eles revelam a existência de uma rede de auto-editores que trocam seus mini-comics, contribuem nas publicações coletivas e se correspondem de um lado a outro dos Estados Unidos. Este pequeno mundo da edição paralela (ou o pequeno mundo paralelo da edição) tem suas vedetes como Matt Feazell, autor de quadrinhos ultraminimalistas onde cenários e personagens são reduzidos à expressão mais simples. Se certos autores da small press vêem este modo de publicação como um primeiro passo em direção a uma publicação profissional, há quem a considere um simples passatempo, enquanto outros consideram já a small press como um fim em si, a liberdade total de expressão compensando a difusão confidencial.


Small press e cultura zine

De fato, encontramos no meio dos small press comics as mesmas tendências por vezes antagonistas que permeiam a cultura dos fanzines de rock, de poesia, de literatura e outros personalzines[6]. Sem ter ainda plena consciência, as small press comics fazem parte de um grande movimento de expressão dos adolescentes e dos jovens adultos, movimento muito ligado à cultura rock e em particular ao punk e às bandas de garagem, que será classificado no início dos anos 1990 de cultura zine.

Deve-se ressaltar uma certa confusão nas categorias que, por sinal, comumente se sobrepõem. Em sua entrevista ao Comics Journal, Caly Geerdes definiu categoricamene: “os fanzines são magazines sobre histórias em quadrinhos de outrem criados por fãs desses quadrinhos. Os mini-comics são pequenos comics feitos por desenhistas. Não há nenhuma relação entre os dois conceitos”.[7] Na realidade, isto não é assim tão claramente definido. Apenas no domínio dos quadrinhos, os fanzines, que aparecem no início dos anos 1960, contêm uma boa parte de matéria textual (informações, análises, cartas e pequenos anúncios), mas também freqüentemente histórias em quadrinhos originais criadas por fãs.

A noção de fanzines deixa pouco a pouco espaço àquela de “zine”, publicação amadora cujo objetivo não é mais necessariamente ser um boletim de uma subcultura, seja de rock ou de quadrinhos. Os zines tornam-se, antes disso, uma cultura autônoma e paralela, um meio de expressão à margem da cultura oficial onde podem se exprimir interesses minoritários ou subversivos. O grande ponto de encontro da “cultura zine” é Factsheet Five, magazine lançado em 1982 como um simples boletim de informações que se transformou, no início dos anos 1990, numa verdadeira revista com circulação de vários milhares de exemplares. Nas páginas de Factsheet Five, os quadrinhos são apenas uma das categorias de zines comentados, e uma quantidade enorme de títulos que não são voltados aos quadrinhos sai nela normalmente.


Edição persistente

Em relação às revistas em quadrinhos, a separação é cada vez mais imprecisa. Quando folheamos a revista Comix F/X, sucessora não oficial de Small Press Comics Explosion, lançada de 1987 a 1991, constatamos que a small press é, doravante, um dos extremos numa continuidade de publicações que vão do amadorismo total ao mais estrito profissionalismo. Autores profissionais como Scott McCloud não hesitam em publicar mini-comics, do mesmo modo que autores que se auto-editam como Julie Doucet começam a ter reconhecimento crítico sem deixar a small press.

Esta tendência se reforçou durante os anos 1990. O mercado de livrarias especializadas teve um grande crescimento em suas vendas. Hoje, os títulos mais populares das grandes editoras Marvel e DC vendem nessas livrarias cerca de 100 mil exemplares, ou seja, um quarto das vendas dos anos 1980. Neste contexto, os editores independentes abandonaram a publicação de revistas. Editoras como Top Shelf, Drawn and Quarterly ou Highwater Books passaram a só produzir livros e uma boa parte de seu lucro vem desde então da venda em livrarias não especializadas. Como Fantagraphics Books nos anos 1980, estes editores estão mais ligados com as sensibilidades que se exprimem na small press. E é deste super ativo viveiro que saem numerosos jovens autores que eles publicam: Tom Hart, Ron Rege Jr., Brian Ralph etc. A passagem da fotocópia à impressão offset é, de outra parte, facilitada pela existência, a partir de 1992, da fundação Xeric. Este órgão fundado por Peter Laird[8] concede bolsas a jovens autores para auto-editar seus quadrinhos. A obtenção de uma bolsa plena é, normalmente, para muitos criadores norte-americanos ou canadenses, uma etapa obrigatória na estrada que leva aos editores independentes.


A small press: um fim em si?

Em seu livro Réinventer la bande dessinée[9], McCloud considera que para fazer sua entrada no “mundo” dos quadrinhos[10], realizar um mini-comic, reproduzi-lo em fotocópias e vendê-lo a um amigo é suficiente. Ele mete, assim, o dedo sobre uma verdade essencial: é o ato que faz o artista. É pintor aquele que pinta, é cineasta aquele que filma, é autor de quadrinhos aquele que faz quadrinhos. O valor artístico e a rentabilidade de uma obra não lhes conferem a qualidade da obra. Se, para a maioria dos autores, os small-press comics são apenas um lugar de passagem sobre um caminho que leva à publicação profissional, alguns começam a afirmar a alteridade radical desse lugar.

John Porcellino, que publica King-Cat Comics & Stories desde 1990 declara, numa entrevista de 2002[11]: “Sem querer nivelar por baixo (…), estar num grupo e fazer você mesmo sua música, ou fazer seu zine ou desenhar sua própria história em quadrinhos e editá-la, em nossa época, é realmente um ato revolucionário. (...) Da forma como as coisas são concebidas hoje em dia, somos levados a abandonar o poder pessoal, abandonar as escolhas, a liberdade de agir, de tomar nossas próprias decisões ou fazer as coisas por si mesmo da maneira que se quer fazer. E tudo isto porque ‘Olhe! Há todas essas possibilidades que são já pré-embaladas e super práticas. Estou seguro que vocês encontrarão uma que vos convenha perfeitamente.’ Eh! bem, não. Eu creio verdadeiramente que o simples fato de dizer ‘Eu vou fazer qualquer coisa por mim mesmo’ é revolucionário.”

A small press pode ser outra coisa que uma versão capenga do “verdadeiro” mundo da edição? Uma coisa pode existir simplesmente porque alguém deseja fazê-la existir, ao largo de todas as considerações econômicas ou carreiristas? Como as outras artes, a história em quadrinhos deve, desde já se colocar estas questões e encontrar ao menos elementos para suas respostas.

 

Jennequin, Jean-Paul. Histoire de la Small Press. In Stripburger, nº 39. Ljubljana, Slovenia: November 2004, p. 62-64; Versão em francês no Suplemento Stripburger Connector, p. b-c.

 


[1] . Lojas que vendem tudo o que constitui a parafernália do perfeito hippie: pôsteres psicodélicos, incensos, “artigos para fumantes”, revistas e comix underground...

[2] . Haverá outros. Por exemplo, o lançamento de revistas mais profissionais, como Comix Book (1974), Arcade (1976), Raw e Weirdo. Nos anos 1980, os editores underground se integrarão ao circuito de difusão dos comic books de massa, as “vendas diretas” em livrarias especializadas.

[3] . Sim, sim, é o mesmo papel e o mesmo procedimento que se utiliza ainda hoje nos fax com bobinas.

[4]. Em abril de 1984.

[5] . O editorial do número 9 dá também indicações sobre a brevidade do boom dos quadrinhos em preto e branco. O editor conta que o número 6 vendeu 3900 exemplares, o 7, 3100 exemplares, o 8, 2800 exemplares e que os pedidos de reserva do 9 são de 2100 exemplares.

[6] . Um personalzine é um fanzine inteiramente realizado por uma só pessoa e geralmente autobiográfico. São geralmente fanzines de textos, mais raramente de quadrinhos. Na França, podemos citar The Adamantine – a gazeta de Harry Morgan, de início fanzine impresso que se transformou nos últimos anos em webzine, Extrait Naturels de Carnets de Laurent Lolmède e Plus Jamais Malade em Auto de Philippe Dumez.

[7]. Extraído de “Keeping The Comix Grapevine”, entrevista de Clay Geerdes com Dale Luciano saída no The Comics Journal 98, maio de 1985.

[8] . Sim, o mesmo Peter Laird que foi um dos criadores das Tartarugas Ninjas. Por intermédio da fundação Xeric, a história em quadrinhos comercial financia os quadrinhos autorais.

[9]. Réinventer la bande dessinée (Vertige Graphic, 2002). Nota do tradutor: no Brasil, Reinventando os quadrinhos. Scott McCloud. M.Books do Brasil. São Paulo: 2005.

[10]. McCloud utiliza a palavra inglesa business, termo muito amplo ao qual o tradutor francês (um certo JPJ) substituiu a idéia de “tornar-se profissional”. Dito isso, a expressão “you’re in the business” não contém necessariamente a idéia que vimos de seu trabalho.

[11]. Entrevista de John Porcellino com Zak Sally publicada no The Comics Journal 241 (Fantagraphics Books, fevereiro de 2002).