Grafite e graffiti
O grafite (ou grafita) é um mineral composto de carbono e usado na fabricação de lápis ou como lubrificante. Por suas propriedades isolantes é empregado também nas centrais termonucleares para regular os processos de enriquecimento do urânio.
O termo italiano graffito deriva do latim graphium, um estilete de ferro ou bronze utilizado para escrever sobre tábuas de cera. A forma plural, graffiti, foi empregada a princípio para designar as inscrições gravadas na pré-história e na antiga Roma. Em 1965, antes que a palavra graffiti fosse utilizada para definir as pichações com spray, o Dizionario Garzanti da língua italiana(1) indicava graffiti como uma “técnica de incisão em muro que consiste em trazer à tona, ao longo da linha de incisão, o fundo escuro por trás da argamassa branca”. Para este autor a palavra seria uma derivação do verbo italiano graffiare (arranhar), cuja origem é uma palavra da antiga língua alemã: krapfo (gancho), que indicava uma alabarda utilizada no assalto às muralhas das cidades sitiadas.
Durante muito tempo, o termo teve uma conotação pejorativa designando genericamente rabiscos de banheiro, palavrões e desenhos obscenos. Nos anos 70 a palavra graffiti começou a ser empregada para indicar as modernas pinturas feitas com tinta spray. O idioma inglês adotou então a forma italiana plural, sem distinção de número.
Nesta época o vocábulo passou a ser empregado também para qualificar um determinado contexto histórico: o dicionário Zingarelli(2), de 1996, remete graffiti a “um sentimento nostálgico por uma maneira de vida de um recente passado (os graffiti dos anos 60)”. O filme American Graffiti, de George Lucas (EUA, 1972), contribuiu para que o termo passasse a designar, de forma mais ampla, essa época marcada pela rebeldia juvenil.
A palavra italiana graffiti deu origem também à forma adotada pelo idioma português: grafito ou grafite (singular) e grafites (plural) que designam as inscrições antigas, riscadas com instrumentos pontiagudos ou carvão sobre rochas e paredes. Adotamos aqui, de maneira geral, a forma portuguesa, já que desde 1987 o dicionário Aurélio(3) registra grafite como inscrição urbana. O termo italiano foi empregado especificamente para indicar o graffiti como fenômeno cultural e os movimentos ligados a esta manifestação.
Graffiti e contestação
Os anos 60 foram marcados por uma intensa efervescência política e cultural em todo planeta. Movimentos juvenis surgem em vários cantos do mundo questionando criticamente as guerras imperialistas, o totalitarismo, a massificação da sociedade industrial, e os tabus culturais e morais. Uma nova geração passa a acreditar que as soluções para as dificuldades do futuro não são absolutamente técnicas, mas também políticas e passa a propor mudanças sociais e culturais na busca de soluções alternativas frente às contradições da modernidade.
Em Maio de 1968, os estudantes universitários e secundaristas reivindicam em Paris a reformulação nos currículos e métodos de ensino. Criticavam o autoritarismo e a política das nações dominantes e as conseqüências da ascensão do capitalismo na França e no resto do mundo. Os estudantes ocupam as ruas e universidades de Paris e outras cidades em confrontos que acabam desencadeando uma espécie de guerrilha urbana, com barricadas, cartazes e panfletos(4).
Nas paredes da Sorbonne os grafites cobrem os muros e atacam os monumentos protegidos por avisos de defense d’afficher (proibido colar cartazes). Nas universidades, poemas e reflexões filosóficas contra o estabilishment são pintadas com piche e cartazes. No mês seguinte, aproveitando a época de férias, as paredes da faculdade são repintadas. A breve duração e a intensidade do movimento tem repercussão internacional. A revolução de comportamento espalha-se pelo mundo repercutindo inclusive no Brasil.
Reproduzimos aqui algumas destas inscrições francesas, coletadas por Julien Besançon e publicadas no Brasil por Cristina Fonseca no livro Poesia do Acaso(5): “A imaginação no poder”; “Viver sem horas mortas, gozar sem entraves”; “A mercadoria, nós a queimaremos”; “A felicidade é o poder estudantil”; “A humanidade só será feliz, no dia em que o último burocrata, for enforcado nas tripas do último capitalista”; “É estritamente proibido proibir”; “Você está sendo intoxicado: rádio, televisão, jornal, mentira”; “Corra camarada, o velho mundo quer te alcançar”; “Sejamos realistas. Exijamos o impossível” e “Eu não gosto de escrever sobre os muros”.
Vários movimento juvenis se manifestam nesta época na Polônia, Alemanha, Itália, Bélgica, Argentina, Chile, México, Espanha, Japão e em diversos outros cantos do mundo. Lutas estudantis antiautoritárias e antiimperialistas culminam em violentas batalhas de rua. Na Tchecoslováquia, em 1968, jovens fazem coquetéis molotov e atiram nos tanques russos que invadiam o país, pintavam nas paredes de Praga frases como “Lenin, desperta! Eles enlouqueceram”(6).
No Brasil, a juventude, a exemplo da França e dos outros países, também se manifesta contra a ditadura militar. Frases políticas ocupam as paredes das principais cidades.
Arte, cultura e grafite: anos 60 e 70
No campo das artes plásticas surgem diversas tendências artísticas que questionam a sociedade industrial e de consumo, a propaganda e a cultura de massa. Esses movimentos trazem à tona a questão da arte, seu papel social e sua relação com o mercado e com os espaços institucionais que ela ocupa, como museus e galerias. A pintura neste período rompe com a estética abstrata predominante nos anos cinqüenta e aponta para uma nova tendência figurativa, com a reintrodução da representação icônica. O Novo Realismo que surge na França propõe um olhar sobre a natureza moderna: a cidade, a fábrica, a cultura de massa, a ciência e a técnica(7).
Sob o impacto da cultura popular urbana e da comunicação de massa, nasce por volta de 1957 em Londres, a Pop Art, corrente que se consolida nos anos sessenta nos Estados Unidos a partir das experiências de apropriação das imagens da indústria cultural, da sociedade de consumo e do uso de novas tecnologias(8).
É também neste período e nos anos setenta que se intensificam as manifestações públicas (happenings) integrando a combinação de várias linguagens artísticas: pintura, escultura, teatro, dança, poesia, música instrumental, rituais mágicos, com a liberação sexual e o protesto político, buscando uma integração entre arte e vida(9).
No campo da poesia o movimento beatnik, reunindo principalmente poetas e escritores nos EUA, já propunha desde a década de cinqüenta uma rejeição aos moldes da poesia acadêmica com o objetivo de questionar as normas fixas entre poesia e não poesia e recuperar a tradição oral improvisando frases, fundindo jazz, corpo, mente e sentidos, rompendo os limites entre arte e experiência diária e aguçando a consciência política e religiosa(10). Estes artistas tornam-se referência para diversos movimentos culturais que surgem posteriormente, como no caso do rap que irá mais tarde fundir fala improvisada e batida eletrônica(11).
Neste contexto, os grafites urbanos que surgem em meados dos anos 70 tomam uma nova dimensão, constituindo um poderoso e criativo discurso visual juvenil, ancorado nas questões colocadas pelos movimentos artísticos das décadas anteriores, propondo novas formas de relacionar arte, política e questões sociais.
Frases poéticas ou políticas, nomes, pseudônimos e endereços, além de desenhos e grafismos denunciam a necessidade da criação artística autônoma no espaço urbano, legitimando a rua como espaço vital para a liberdade e a expressão. Ao ocupar as ruas os grafites colocam em questão o acesso à cultura e o mercado de arte que aprisiona as obras em museus e galerias.
Assim como nos happenings, a escrita nos muros se transforma em espetáculo público, em ritual, envolvendo música, dança, performance e protesto, no caso do grafite inserido no movimento hip hop(12).
Década de 80, Graffiti Art: rumo às galerias
Em Nova Iorque o panorama das artes plásticas nos anos oitenta foi marcado pelo retorno de vários artistas à prática da pintura e pelo restabelecimento do mercado da arte depois das aventuras neoconceituais dos anos anteriores.
O neo-expressionismo alemão e a bad-painting vêm assinalar ainda mais este regresso à pintura, na espontaneidade do gesto e aos grandes formatos das telas. A avidez de colecionadores e marchands e um crescente processo de mundialização da arte norte-americana provoca o interesse mundial por novas linguagens que sintetizassem várias sensibilidades artísticas e atitudes sócio-políticas. Aos poucos o grafite ganha força e espaço na mídia e iniciativas são tomadas com o objetivo de levar a linguagem das ruas para os ateliês.
O East Village, pólo aglutinador da vanguarda artística e da boemia nova-iorquina, foi de fundamental importância nesse contexto, na medida em que lançou no mercado de arte vários artistas cuja origem era o grafite de rua, promovendo a inserção desta manifestação no mercado de arte(13). Para absorver esta produção foi criada uma rede de galerias em 1981. A primeira delas, a Fun Gallery, fundia artes plásticas, música e dança e impulsionou a carreira de artistas como Jean-Michel Basquiat, Keith Haring, Kenny Scharf, James Brown, Ronnie Cutrone e outros grafiteiros que voltam suas produções para o mercado de arte e tornam-se artistas internacionalmente conhecidos, ganhando fama e projeção internacional(14).
Os anos 60 e 70 passaram, e aprendemos com eles novas formas de entender o mundo e agir sobre ele. Trouxeram novas formas de comunicação, de configuração do espaço urbano e um novo ator social: o jovem. Os grafites permaneceram não mais políticos e nem tão bem cotados nas galerias, mas sua estética permanece imposta claramente na moda e nos meio de comunicação dos anos 80 e 90.
Talvez o grafite seja uma das formas de expressões do nosso tempo que melhor sintetize a arte, a juventude e a rua.
A onda nova-iorquina
O graffiti produzido em Nova Iorque no final dos anos 60 se difunde pelo mundo inteiro nos anos 80, agregado ao movimento hip hop. Inscrições de caráter político já existiam nos EUA, inclusive sobre vagões de mercadorias, pelo menos desde a década de 30(15).
Ao contrário do fenômeno parisiense de maio de 1968, estas inscrições não tinham conteúdo político ou filosófico. Em sua maioria tratava-se de nomes, pseudônimos e endereços de adolescentes que, ao divulgar sua própria (logo)marca, se apropriavam de meios e modelos utilizados pela sociedade de consumo.
A idéia de escrever ostensiva e repetidamente o próprio nome pela cidade parece ter partido de dois jovens de Filadélfia. Mas foi em Nova Iorque que esta prática iria se consagrar definitivamente a partir das pichações deixadas nas estações metropolitanas de trens, principalmente pelos jovens da periferia.
Em julho de 1971, quando o significado de inscrições como JULIO 204 ou CHEW 127 e FRANK 207 já intrigava os passageiros dos metrôs, o jornal The New York Times publica um artigo sobre um jovem do bairro Washington Heights, Demetrio, que em suas andanças pela cidade como office-boy deixava sua marca, TAKI 183, espalhada por toda parte(16). A reportagem, que contribuiu para consagrar para sempre este pichador, teve uma forte repercussão e acabou por incentivar a prática. Não demorou muito para que centenas de jovens deixassem espalhadas suas assinaturas pelas paredes e trens de Nova Iorque.
Começa então uma competição para espalhar o maior número de assinaturas nos vagões de metrô. É o bomb, “bombardeio” (sobre os termos empregados aqui ver o glossário dos grafiteiros à pág. 166). Na disputa para destacar a própria marca entre tantos nomes, os jovens começam a desenvolver grafias originais e estilos característicos, os chamados tag. Nas inscrições aparecem contornos, as letras tornam-se maiores, alargadas, decoradas com motivos internos. As letras, executadas rapidamente com poucas cores (geralmente uma para o contorno e outra para o preenchimento), ficam conhecidas como throw-up, literalmente “vômito”.
As possibilidades oferecidas pela lata de spray (aerosol spray can: o protótipo do spray foi patenteado ainda em 1927 pelo norueguês Erick Rotheim, a lata com tinta é de 1949)(17), como transporte e manuseio fácil, agilidade nos movimentos, possibilidade de realizar inscrições de efeito como o esfumado, faz da lata o instrumento preferido dos grafiteiros. A possibilidade de aumentar ou diminuir o volume do jato de tinta empregando válvulas intercambiáveis de outros produtos, leva à produção da masterpiece, técnica atribuída a SUPER KOOL 223, que teria realizado também o primeiro whole car, ocupando a superfície inteira do vagão.
O reconhecimento da paternidade desta ou daquela tendência do “graffiti hip hop” é subjetivo. É difícil saber quem foi o primeiro autor de um determinado estilo. De qualquer forma, FLINT 707, PEAR 136, PEL, HONDO 1 e SNAKE 131 são nomes sempre citados na primeira fase do graffiti nova-iorquino. Entre as letras mais conhecidas a Broadway teria sido criada na Filadélfia por PAN DE MAIZ e levada para Nova Iorque por TOPCAT 126(18). Já a letra bollet (ou softie letter) foi elaborada por PHASE 2 e o estilo “3D” por PISTOL, dentre outros. O acréscimo de serifas, setas e espirais é a base do wild style (estilo selvagem), um dos mais complexos tipos de grafite que surgiu durante a “guerra de estilos” entre os autores. Dentre os mais combatentes vale a pena lembrar RIFF 170.
O maciço “ataque” aos trens, operado até começar a repressão dos grafites nos vagões por parte das autoridades no final dos anos 70, foi uma verdadeira guerrilha urbana. O horário dos trens era meticulosamente observado. Para a realização dos grafites, feitos geralmente à noite, os jovens muitas vezes corriam risco de vida. Para definir suas ações ilegais, os autores passaram a empregar uma linguagem específica, impregnada de termos bélicos como bomb e attack (“ataque” ou “detono” aqui no Brasil).
Apesar das inscrições norte-americanas privilegiarem o aspecto estético e formal das letras mais do que propriamente o conteúdo ou a mensagem contida na inscrição, os autores se definirão como writers, escritores. As obras são chamadas por termos como piecing (peça) e writing (escrita). Com o estudo desta manifestação por parte de jornalistas e pesquisadores, o termo graffiti, até então empregado para indicar as inscrições da antiguidade, passa a designar as escritas nova-iorquinas(19).
Em 1974, quando o movimento se consolida, ao lado das escritas aparecem os primeiros desenhos, cenários e recursos visuais próprios das HQ, realizados por autores como BLADE ONE, CLIFF 159 e AJ 161(20). O throw up é espalhado por crews (galeras) que se autodenominam com siglas como TC (The Crew), POG (Prisioneers Of Graffiti) e 3yb (Three Yard Boys). DOC, MONO, SLAVE e LEE, do consagrado TF5 (The Fabulous Five), chegam a cobrir um trem de dez vagões, uma empreitada rara.
No final da década de 70, CHAIN, DONDI, DAZE e FUZZ ONE, dentre muitos outros autores que integram as centenas de crew da cidade, são a última geração de writers a deixar sua marca nos trens da IRT (Interborough Rapid Transit), uma divisão do metrô de Nova Iorque. Em seguida as autoridades do trânsito metropolitano, o MTA (Metropolitan Transit Authority), intensificam o programa de remoção dos grafites dos vagões (the Buff) retirando de circulação e limpando rapidamente os trens(21).
A repressão intensa e as leis rígidas baixadas nos anos 80 apagam um pouco a febre. Muitos writers são obrigados a procurar atividades alternativas e alguns são cooptados pelo mercado. O convívio com as galerias de arte já tinha sido uma experiência bem sucedida quando, nos anos 70, tinham funcionado organizações como a UMA (United Graffiti Artists, 1972) e a NOGA (Nation Of Graffiti Art, 1974), espaços promovidos pelo sociólogo Hugo Martinez e pelo ator Jack Pelsinger, respectivamente(22).
Os grafites passam então a gozar, durante um certo tempo, da atenção das galerias de arte. A princípio junto aos grupos underground, e em seguida com a sociedade e as instituições em geral, o grafite encontrará na Europa do final dos anos 80 um ambiente mais receptivo que o das metrópoles dos EUA. As bases estilísticas do graffiti norte-americano são assimiladas rapidamente pelos autores europeus, que renovam e consolidam este meio como uma tendência mundial.
Os grafites de rua começam a ser fotografados e aparecem ensaios e livros como Subway Art (1984) de Henry Chalfant e Martha Cooper, e chegam ao cinema com o filme Style Wars (1983), dirigido por Tony Silver. O estilo e a técnica dos grafites nova-iorquinos alcança também outros países através das fitas, filmes, revistas e fanzines que promoveram a difusão maciça do movimento hip hop.
Em 1987, no livro Spraycan Art, Chalfant e James Prigoff documentam a difusão mundial da arte do sparay(23).
O movimento Hip Hop
No final dos anos 60, a juventude negra e hispânica das periferias de Nova Iorque sofria com o agravamento de sua condição: aumento das tensões raciais, do desemprego e da criminalidade. A guerra do Vietnã agravava ainda mais a crise: os soldados, em sua maioria negros, voltavam do conflito mutilados e viciados em drogas. Cansados da violência e do descaso das autoridades frente as suas questão e em meio aos ideais pacifistas promovidos pelo movimento hippie e por personalidades como Martin Luther King, surgem entre os negros grupos de resistência pacífica.
Em meados da década de 60, o Black Power (Poder Negro) consolida o ativismo radical de alguns grupos conduzindo-os a uma nova consciência étnica, à conquista de direitos civis, políticos e econômicos(24). Do Black Power emergem os Black Panthers (Panteras Negras), grupo político que visava proteger e ajudar a comunidade negra norte-americana(25). Patrulhavam as ruas vestindo jaquetas de couro, boinas pretas e armados sob o amparo da lei que permitia o porte de arma de fogo a todo cidadão cuja integridade física fosse ameaçada. Defendendo uma comunidade discriminada e marginalizada nos guetos, reivindicavam a liberdade, a justiça, o direito ao emprego, à moradia, à terra e à educação.
Neste contexto surge o hip hop, movimento composto de música (tocada pelo disk jokey), dança (break), poesia ritmada (rap) e artes visuais (graffiti). A experiência política do Black Power repercute no movimento com a reivindicação dos direitos de uma classe social cada vez mais arrochada pelo desemprego e precariedade do sistema educacional. Era a situação de uma juventude excluída, principalmente dos bairros negros e hispânicos.
Na organização de festas de rua conhecidas como “bailes black”, o hip hop usava a criatividade, como a manipulação de um toca discos como instrumento, improvisando novas músicas sobre as bases já gravadas. Gestos fragmentados, ansiosos e acrobáticos, som frenético, martelador e sincopado, movimentos largos, rápidos e espontâneos dos sprays, fundiam novas tecnologias. O resultado é uma síntese de artes: poesia, música, dança, cenografia... Um grande happening metropolitano, reunindo inventividade, inovação e contestação, reafirmando a capacidade dos jovens de perceberem, combinarem e representarem diferentes elementos do domínio da arte(26).
A partir da Zulu Nation, organização não-governamental criada em 1973, pelo DK Afrika Bambaata, o hip hop se organiza e é reconhecido como cultura. Bambaata fundou a Zulu Nation para que não houvesse mais brigas e mortes entre os “irmãos de rua”(27). A proposta era substituir os conflitos entre as gangues que se confrontavam nos subúrbios por competições musicais de dança e de grafite. No Bronx estes encontros eram promovidos ao som dos sound-systems, aparelhos que contavam com dois toca discos, dois amplificadores e um microfone. O jamaicano Kool Herc introduziu as colagens de bases rítmicas, aproveitando os breaks das músicas e as primeiras narrativas feitas sobre estas bases. A partir de então, a atenção das festas se concentrou nas figuras do DK (discotecário) e do MC (mestre de cerimônia), dando origem ao rythm and poetry (ritmo e poesia), o RAP, com seu discurso de denúncia das questões de injustiça nos guetos(28).
O RAP promove um discurso verbal, às vezes improvisado por um conjunto de rappers, centrado na fala proferida ao ritmo da música. Eventualmente emprega as bases tradicionais de cinco notas da percussão africana.
A primeira música de que se tem notícia que misturava o vocal com a batida foi The lover In You, do grupo Sugarhill Gang(29), embora ainda não trouxesse o conteúdo de contestação característico do gênero.
O primeiro rapper a tornar-se conhecido foi Grand Master Flash. Ele lançou um single chamado The Message, uma música que só tinha uma batida ritmada e um texto que falava sobre a miséria da vida e sobre o que a América fazia com seus filhos negros.
O break-dance, estilo de dança performática que acompanhava as festas, nasce e cresce nos guetos seguindo o ritmo fragmentado da música. Inspirado nas performances de James Brown, o break sofreu variações sob a influência das lutas marciais difundidas pelo cinema e das diversas origens dos imigrantes que compunham a população do Bronx. Algumas coreografias remetiam ao movimento das hélices dos helicópteros da Guerra do Vietnã(30). Os dançarinos de break são chamados break boy e break girl, ou simplesmente b.boy e b.girl.
Glossário
O grafite hip hop mantém um vocabulário próprio, com termos específicos que são compartilhados por grafiteiros de diversos países do mundo, envolvendo atitudes, moda e estilos.
Tag: assinatura do nome ou apelido do grafiteiro. “Presa”, presença.
Bomb (bombardeio): produção intensa e maciça de escritos.
Bullet (boleta): letras arredondadas e “infladas”.
3D: o grafite tridimensional é, talvez, o estilo mais cobiçado entre os grafiteiros da new school. Explora o efeito tridimensional para dar volume a desenhos e letras.
Free style (estilo livre): trabalho livre, improvisado.
Throw-up (vômito) ou “grapicho”: estilo de rápida execução, conhecido por usar poucas cores contrastantes, geralmente duas.
Cap: o bico de lata. Existem vários tipos, podem soltar um jato fino (skin cap, ou skinny) ou largo (fat cap ou hardcore).
Fanzine (abreviação de fanatic for magazine: fanático por revistas): revista produzida de forma independente, geralmente fotocopiada, que funciona como veículo de comunicação entre os grafiteiros.
Flick: uma foto de grafite.
Outline e powerline: linha de contorno que pode remeter a certos efeitos próprios da linguagem dos quadrinhos.
Piece: grafite realizado com primor ou que ocupa uma área delimitada.
Piece Book: livro com desenhos, tags e rascunhos do grafiteiro.
Toy (brinquedo): expressão utilizada para indicar um principiante ou alguém que grafita apenas por moda.
Whole car: grafite que ocupa a fachada inteira do vagão. Pode ser de cima abaixo (top to top) e de fora a fora (end to end).
Wild style (estilo selvagem), ou tribal: estilo complexo, agressivo, composto por letras entrelaçadas entre si através de setas e traços retorcidos. Característico da old scholl, o wil style é considerado um dos estilos mais difíceis de se fazer.
Hip e hop são gírias norte-americanas: hip é a abreviação de uma outra gíria, hipster (pessoa atualizada com modismos, manias) e hop significa: baile, viagem, ir-se(31).
Dois casos brasileiros: São Paulo e Belo Horizonte
No Brasil ocorreram, na década de 60, movimentos sociais organizados por estudantes universitários que reivindicavam melhorias no sistema educacional. A partir de 1964, a ditadura militar impôs restrições às manifestações estudantis e de outros segmentos da sociedade. As lutas se intensificaram, fazendo crescer os conflitos nas ruas sob o poder do porrete, da prisão e da tortura.
Os estudantes representavam a insatisfação de amplos setores sociais e, juntamente com os artistas, desempenharam importante papel neste contexto, utilizando-se da música, teatro, poesia e artes plásticas como formas de protesto(32). Pichações apareciam da noite para o dia nos muros, fachadas e prédios públicos durante passeatas e ocupações. As mensagens eram frases diretas contra a censura, a tortura, o imperialismo norte-americano e aclamavam a insurreição e a luta armada.
No final dos anos 70, com o enfraquecimento da ditadura, o processo de abertura política no Brasil propiciou o retorno de atividades artísticas e manifestações culturais. Foi neste contexto que as pichações, desaparecidas com a repressão, reapareceram menos densas e mais poéticas. Frases enigmáticas e irônicas surgiram nas ruas, criando um jogo lúdico e imaginativo com a cidade: “Cão fila”, “Rendam-se terráqueos”, “Maria Clara, quero a gema”.
Em São Paulo, formam-se grupos de artistas e estudantes que exploram o potencial conceitual do grafite como forma de intervenção urbana. Sob a influência da Pop-Art norte-americana, aparecem no cenário urbano paulista as imagens de artistas como Carlos Matuck, Waldemar Zaidler e Alex Vallauri, que em seus trabalhos se apropriam de personagens das histórias em quadrinhos e outros símbolos da cultura de massa. Retiravam as imagens do seu contexto original imprimindo-as em lugares públicos, emitindo mensagens integradas ao ambiente urbano(33).
Vallauri em particular recupera uma técnica antiga, a stencil art (ou molde vazado, impressão realizada a partir de uma máscara recortada), empregada nos anos 30 pelos artistas da École de Paris(34). Sua produção chama a atenção da mídia e, em 1981, Vallauri participa da Bienal Internacional de São Paulo. Em 1985, volta à Bienal com a célebre “Festa na Casa da Rainha do Frango Assado”(35).
O TupinãoDá, outro grupo atuante em São Paulo nos anos 80, formado por estudantes do meio universitário, promove, em 1987, diversas intervenções urbanas de grande porte que se tornaram emblemáticas, como a grafitagem do túnel da Rebouças. Integrado, dentre outros, por Jaime Prades, Milton Sogabe, José Carratu e, mais adiante, Carlos Delfino e Rui Amaral, o TupinãoDá realizou obras politizadas e conceituais – a utilização de giz sobre fundo preto, com a qual se explora a efemeridade do meio, é uma delas. Em 1987, o grupo chega a ocupar o pavilhão anexo na Bienal(36).
As cabeças “africanas”, de John Howard, e os murais de Celso Gitahy, autor do livro O que é graffiti(37), são outros exemplos de grafites realizados por autores ligados às artes plásticas.
Nos anos 80, começam a aparecer também manifestações culturais ligadas ao movimento hip hop. Nos grandes centros do país, alguns jovens passam a se encontrar para dançar e trocar idéias sobre as referências da moda vinda de Nova Iorque. Alguns pontos, como a estação São Bento(38), em São Paulo, e o Sunday’s, em Guarulhos, tornam-se lugares conhecidos de encontro de b.boys, rappers e grafiteiros. Entre os autores fortemente influenciados pela estética hip hop estão Rooney, Def Kid, Zecão, Guerra de Cores, Kaze e, principalmente, Os Gêmeos, que com seu estilo inconfundível ganharam projeção internacional e continuam ativos, ainda hoje, ao lado de outros como Speto e Binho.
Em Belo Horizonte, que, assim como Brasília já era então um dos centos do hip hop mais ativos do Brasil, o desenvolvimento do graffiti acompanha as rodas de break e a difusão do movimento. A praça da Savassi (parte nobre do centro comercial da cidade), passa a ser um dos primeiros pontos de reunião onde, ao som de MC Pelé e do DJ Alberto, os jovens ensaiam em rodas de break os passos e o visual aprendido através dos primeiros videoclipes(39).
O filme Beat Street, dirigido por Stan Lathan, em 1981, tornou-se referência. Apresentando o dia-a-dia de um grupo de jovens do gueto de Nova Iorque ligados ao hip hop, e estrelado por personagens como Afrika Bambaata, Beat Street aborda o grafite através do conflito entre um grafiteiro, que acredita em suas intervenções sobre os trens como uma forma de arte, e um pichador, que atropela metodicamente tudo o que o outro faz(40). Assim como no filme, cada grupo de break em Belo Horizonte passou a ter um desenhista talentoso para estampar seus próprios trajes. Para alguns autores esta atividade chegou a se tornar até lucrativa.
Calças folgadas, toucas e roupas pintadas substituíram então as malhas listradas “tipo Adidas” e o cabelo black-power. Em algumas danceterias, os DJ’s trocaram o pacato som “charme” pela batida mais pesada do base e do daff abrindo espaço para os “rachas” de grupos como Break Crazy, do Padre Eustáquio (na região noroeste), e Bestie Boy’s, da Cidade Industrial.
Dentre os principais pontos de encontro à noite e no fim de semana estão a quadra poliesportiva do Vilarinho (na periferia ao norte da cidade), o Máscara Negra e, mais adiante, o terminal turístico JK (hipercentro).
Até o começo do movimento hip hop, as inscrições na cidade tinham sido predominantemente de caráter político. O cartunista Lacarmélio é apontado como um dos primeiros a realizar mensagens autopromocionais, espalhando pela cidade “Leia Celton”, ou simplesmente “Celton”, para divulgar as histórias do personagem homônimo, cujas revistas o autor vende ainda hoje, pessoalmente, nas esquinas de Belo Horizonte.
Pioneiro do grafite na cidade, o b.boy Dentinho, da Break Krazy, conta que se primeiro trabalho fora dos tradicionais pontos de encontro da galera no bairro foi no bowl do Anchieta(41) (bairro nobre da região centro-sul).
Por volta de 1987, os grafites de Dentinho, Ângelo, Beto, Prexeca, Silvinho, Sol, Ba, Nego, Vaguinho, GMC e Harllen, dentre outros, se alastram pelos muros dos bairros Carlos Prates, Caiçara, Cabana, Venda Nova e Planalto, nas regiões Noroeste, Norte e Oeste. Ângelo (AJ) e Dentinho contam que, quando ainda não existiam grafites no Centro, saíram carregando dois painéis de madeirite grafitados da rua Padre Eustáquio até a avenida Afonso Pena (da região noroeste ao centro). Ali amarraram os painéis na grade do Parque Municipal(42).
De maneira geral, os throw-up desta época eram constituídos por palavras aleatórias, tiradas de algum rap ou deixadas por autores inspirados que assinavam com spray, material então difícil de se conseguir e, teoricamente, fora do alcance dos adolescentes. O estilo e as referências pessoais de cada um complementavam o escasso material que aqui chegava através de capas de discos e filmes. Uma fonte importante de informação eram os relatos dos brasileiros que voltavam de Nova Iorque, como o grafiteiro Erick, de Governador Valadares. O intercâmbio com São Paulo, onde circulavam mais notícias e já atuavam figuras como DJ Thaíde, então b.boy da Back Spin Crew, também contribuiu para o desenvolvimento do movimento em Belo Horizonte.
Nos anos 90, os grafites passam a ser realizados em pontos significativos do centro da cidade. Em 1991, GMC realiza um grafite na escadaria da SULACAP (centro) como homenagem ao MC Natal (Natalício), falecido naquele ano. Em 1994, o mesmo GMC grafita o salão Preto e Branco, na galeria da Praça 7 (no centro).
Os proprietários desse salão promovem, dois anos depois, o evento Grafitando BH, com um debate e uma intervenção na Praça da Estação (centro), nas paredes do Projeto Miguilim. Convidados como OsGêmeos, de São Paulo, e os principais grupos da cidade participam da iniciativa. Dentre eles: Harllen, Bin, Crazy Boys, Posse Sta. Luzia, além de veteranos como GMC, Dentinho, Ginho e Vaguinho, integrantes da crew Arte e Graffiti. Do evento participa também a Flit, grupo mais ligado ao ambiente universitário e às experiências paulistas com molde vazado. A busca pelo diálogo com diferentes suportes levará os integrantes da Flit à publicação da revista Graffiti 76% quadrinhos.
A partir da segunda metade dos anos 90, a popularização do fenômeno grafite-pichação atinge a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) que, num primeiro momento, tenta inibir a prática reprimindo os infratores, em sua maioria menores de idade. A Lei n. 6.995, de novembro de 1995 proíbe a pichação, considerada como “o ato de inserir desenhos obscenos ou escritas ininteligíveis nos bens móveis ou imóveis (...) sem autorização do proprietário, com o objetivo de sujar, destruir ou ofender a moral e os bons costumes”. Apesar de prever detenção e multa, a nova lei não conseguiu inibir o problema.
“A pichação é uma escrita aparentemente sem memória e conteúdo. Temos que aprender a ler esta escrita. Estes jovens estão querendo dizer alguma coisa”. Em 1999, a partir desta interrogação do doutor Célio de Castro, então Prefeito de Belo Horizonte, a PBH busca um diálogo com grafiteiros e pichadores, criando o Projeto Guernica. Pela “via do conhecimento, da arte e da escuta”(43), o Guernica realiza oficinas em diferentes áreas da cidade e promove uma reflexão acerca do patrimônio e do visual urbano.
O sucesso da exposição American Graffiti, realizada em 1998 no Palácio das Artes, fomenta a realização, ainda no ano seguinte, de um concurso que premia e expõe no mesmo espaço os trabalhos dos numerosos autores locais.
No mesmo ano, cerca de 140 jovens se encontram no Instituto de Educação para fundar a AMG2, “Associação Mineira de Grafiteiros”.
Pichação e graffiti
“(...) compravam latas, latas, latas. Assim, e não parava com a ‘parada’ no dia, andando. Cinco horas da manhã e voltava pra casa, com o dedo descolado, assim, sem a tampa do dedo porque chegou a colar no pires, de tanto pichar.”
Peninha(44)
À diferença de outros países, no Brasil são empregadas correntemente duas palavras para indicar as modernas inscrições nas paredes. Distinta de graffiti, termo com o qual se reconhece a estas manifestações uma intenção estética e de diálogo com suporte e transeuntes, pichação tem uma conotação pejorativa e remete às inscrições realizadas com piche. No senso comum, este ato está ligado a um processo anárquico, onde o que importa é transgredir, provocar e agredir o patrimônio alheio chamando a atenção sobre si. Ao mesmo tempo, as inscrições apontam para os limites e contrastes da sociedade moderna e do modelo econômico adotado por ela: os ícones promovidos pela mídia comercial convidam para um mundo fictício, um éden inatingível, criando deliberadamente para promover a marca e o nome de “alguém”. Justamente à perversidade deste modelo deve ser imputada a responsabilidade das inscrições terem adquirido, na modernidade, o caráter de um fenômeno de massa, quase de uma moda.
Às declarações e manifestações de protesto que acompanham os muros desde a invenção da escrita se sobrepõem, hoje, apelidos realizados com uma caligrafia inusitada, por meio de spray, rolinho e tinta. Ao lado dos tag aparecem mensagens esporádicas como: “fui eu”, “somos sinistros”, “só de fuga”, e outras frases do tipo “tá pra surgir uma galera q pega mais broto”, “as outras tiram onda, a AR tira a praia inteira”, ou ainda “somos a triste opacidade dos nossos espectros futuros”. Provocatória, a produção de pichações coloca seus autores à margem da legalidade. A adrenalina é o principal “barato” do pichador e afeta o jovem justamente na idade em que aprendemos a conhecer os limites.
Se aflora na adolescência, a prática do rabisco começa evidentemente antes, na escola. Aprendemos a escrever por imitação, copiando as letras do professor traçadas com giz no quadro negro. Na carteira, no banheiro e no canto dos livros didáticos, a ação lúdica do rabisco cresce nas entrelinhas do programa didático, nos momento de distração.
Uma vez alcançada a rua, as inscrições se tornam um ato de “apropriação visual”: ao marcar seus itinerários pela cidade o pichador passa a interagir com o universo simbólico urbano.
Sozinhos ou em grupo, os jovens pichadores atuam geralmente durante a noite, seguindo regras e critérios próprios. Na disputa pelo “ibope”, que garante a notoriedade do pichador, o que vale é a ousadia, a localização e a quantidade de escritas. Pichar em locais de grande circulação, de difícil acesso ou próximos a um posto de polícia, por exemplo, contribui para consagrar o autor.
A realização de alguns “ataques” comporta estudo do local, planejamento da incursão, escolha do material, além de habilidade e coragem. Estas características determinam o sucesso do pichador em seu meio: o mais ousado passa a ser reconhecido e respeitado. Nas festas vira fatalmente alvo do interesse das mulheres.
O grau de notoriedade do pichador influencia sua posição no ranking das galeras. Essa hierarquia muitas vezes é explícita na pichação com a colocação de números (01, 02 etc.). Organizados inclusive com carteirinhas, os principais pichadores de diferentes galeras chegam a se juntar em ulteriores grupos, como os Pichadores de Elite (PE), de Belo Horizonte, que nos anos 90 se encontravam no Central Shopping (centro).
Entre os pichadores mais ativos nesta época em BH estão Gambôa, Jiraia e Cossi do CK (Comando Killer), que ligaram seu nome ao fenômeno da “blindagem”(45): no bairro ou nas avenidas, a supremacia de uma galera passou a ser declarada com a demarcação ostensiva do território, “atravessando” (riscando por cima) as marcas dos outros grupos.
Na capital mineira, como em muitas outras cidades, a pichação acabou se tornando prática comum entre as torcidas organizadas dos grandes times de futebol. Nos anos 80, após a Máfia Azul pichar a sede do Atlético em Lourdes, o fenômeno generalizou-se. De fato, é nos grandes templos do futebol que a pichação adquire para o jovem o caráter dos grandes conflitos, e passa a integrar a coreografia mítica do ritual esportivo.
Para além da agressão e dos eventuais danos ao patrimônio provocados pelas inscrições, o que mais intriga o pesquisador desta “guerrilha visual” é o fato de os pichadores terem criado uma linguagem necessariamente criptográfica, empregando pseudônimos, grafias e códigos aparentemente enigmáticos, incompreensíveis para o cidadão comum.
Se perante a sociedade estas escritas permanecem anônimas, entre os jovens elas acabam por tornar-se uma segunda identidade. Como nas inscrições realizadas nos antigos rituais totêmicos, as pichações aludem justamente às relações que existem entre o pichador e o conjunto dos grupos que compartilham esta prática. Ao lado da tag, o pichador costuma colocar a sigla do grupo ao qual pertence (em alguns casos mais de um), sua posição no ranking da galera (01, 02 etc.) e, eventualmente, o nome do bairro ou da região onde mora. Outros dados, como a filiação a uma torcida organizada, completam a composição. O tempo de atuação do grupo, por exemplo “APB 7 anos”, também aparece de vez em quando. O nome de uma galera, aliás, pode ser perpetuado por mais de uma “geração” de pichadores.
A propriedade mágica atribuída às inscrições ainda no paleolítico é sentida ainda hoje pelos pichadores que chamam suas marcas de “presa”, gíria que indica justamente a assinatura nos muros, capaz de evocar a “presença” de seu autor. Nesse sentido, a iniciação a esta prática pode representar a superação de um desafio pelo qual o adolescente é reconhecido perante o seu e os outros grupos.
A escola, instituição que sempre relegou o desenho às margens dos programas educacionais e que hoje se queixa do escasso interesse dos alunos para a escrita e a leitura, pode reavaliar o potencial implícito nesta manifestação. Considerando que o interesse pelas inscrições, bem como pelo desenho, geralmente diminui com o fim da puberdade, a sociedade não deveria tratar a pichação simplesmente como um crime comum. A realização de desenhos e inscrições pode desempenhar um papel importante na formação da identidade do jovem, principalmente no que diz respeito à sua auto-estima e relação com o grupo.
Notas:
1. G. CUSATELLI (org), Dizionario Garzanti della Lingua Italiana, 1965.
2. N. ZINGARELLI, Lo Zingarelli dizionario della lingua italiana, 1996.
3. A. B. de H. FERREIRA, Novo Dicionário Aurélio, s.d.
4. T. SCAFF, Graffiti – II Semana Cultural da FUMEC, 1989, p.2, datilo.
5. C. FONSECA, A poesia do acaso, s.d., p.18 e ss.
6. O. C. F. MATOS, As Barricadas do desejo, 1989, p.20 e ss.
7. M. A. RIBEIRO, As Neovanguardas: Belo Horizonte – anos 60, 1984, p.36.
8. Ibidem, p.41 a 43.
9. Ibidem, p.42 a 47.
10. Ibidem, p.35.
11. M. do C. VENEROSO, Caligrafias e escrituras: diálogo e intertexto no processo escritural nas artes no século XX, 2000, p.208 e ss. datilo.
12. A. B. OLIVA, American Graffiti, 1998, p.109-110.
13. M. do C. VENEROSO, op. cit., p.242.
14. Ibidem, p. 245.
15. LEE, History, Part 1 – Ground Work 1966-71, 1998-2003,
16. J. de DIEGO, La estética del graffiti en la sociodinámica del espacio urbano, 1997, cap. 14.1. datilo.
17. Aerosol spray can, in:
18. J. de DIEGO, Op. Cit., 1997, cap. 14.2.
19. Ibidem, cap. 5.
20. LEE, History Part 1 – Pioneering 1971-74,
21. Ibidem, Style Revival, 1978-1981.
22. J. de DIEGO, Op. Cit., 1977, cap. 14.3.
23. LEE, Henry Chalfant-Photograper/Filmmaker,
24. I. BENTES e M. HERSCHMAN, Geração hip hop, Folha de São Paulo, Caderno Mais, Domingo, 18 de agosto de 2002, p.9.
25. E. MARTINEZ, Mundo negro http://www.mundonegro.com.br 02 de maio de 2003.
26. A. B. OLIVA, American graffiti, 1998, p.111 e 112.
27. E. N. ANDRADE, Rap e educação, 1999, p.86.
28. J. DAYRELL, A música entra em cena: o Rap e o funk na socialização da juventude em Belo Horizonte, 2001, p.39 a 40.
29. M. ALEXANDRE, Muito além do Hip Hop, 2003, p.41.
30. E. N. ANDRADE, op. Cit., 1999, p.87.
31. C. M. A. RAMOS, Grafite, pichação & cia., 1994, nota a p.19.
32. D. A. R. FILHO, 68 a paixão de uma utopia, p.19.
33. C. M. A. RAMOS, op. cit., p.91 e ss.
34. S. R. da SILVA, Stencil Art na contemporaneidade: uma homenagem a Alex Vallauri, texto para a exposição na UNICID, 2001, datilo.
35. M. O. de M. VASSÃO e M. A. do N. PONTES, Alex Vallauri: trajetória passo a passo,
36. C. M. A. RAMOS, op. cit., p.11 e ss.
37. C. GITAHY, O que é graffiti, 1999.
38. E. N. de ANDRADE, op. cit., 1999, p.88.
39. P. BAGNARIOL, Entrevista com Dentinho e Ângelo, Belo Horizonte, 2004, datilo.
40. Beat Street, dir. Stan Lathan, EUA, 1981.
41. P. BAGNARIOL, op. Cit., 2004, datilo, p.4.
42. Ibidem, p.6.
43. M. I. LODI, A escrita das ruas e o poder público no Projeto Guernica de Belo Horizonte, 2003, p.141.
44. P. BAGNARIOL, Entrevista com Ba, JC e Peninha, Belo Horizonte, 2003, p.19, datilo.
45. Ibiden, p.18.
Referência:
VIANA, Maria Luiza e BAGNARIOL, Piero. História recente do graffiti, in BAGNARIOL, Piero e outros. Guia ilustrado de Grafitti e Quadrinhos. Belo Horizonte: 2004, p.155-185.