quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Guerrilha na Maciel Pinheiro

Por Ramon Porto Mota

O relógio marcava quase dez da noite quando virei a esquina da Sá Andrade com a Maciel Pinheiro, no centro histórico de João Pessoa. No começo da rua já avistava a movimentação da equipe, que deveria ter chegado às 7h para preparar a locação e montar o equipamento. Até então não havia sido filmado um único plano sequer da ordem do dia e ainda faltavam alguns ajustes para que rodassem a câmera pela primeira vez no último dia de filmagem d’O Plano do Cachorro.

Calado e pisando devagar, fiz o que mais se faz em um set de filmagem: esperei. E em silêncio absoluto. O primeiro plano era, aparentemente, simplíssimo: um personagem (interpretado por Flávio Melo) próximo da câmera deitado no chão e o outro (interpretado por Nanego Lira) mais à frente, em pé. O primeiro levanta subitamente. Corta. Coisa rápida, sim? Bem, não. Faltava ajustar alguns detalhes, e o primeiro deles – a lista sempre é longa – ficou visível quando um caminhão pipa cortou a Maciel Pinheiro, passando a poucos metros da câmera.

Simples questão de continuidade: a chuva que caiu no primeiro dia de filmagem obrigou a equipe a molhar o asfalto da Maciel Pinheiro, obrigando a produção a se virar em busca de um carro pipa – ou então teríamos um plano com o chão molhado e o contra-plano com o chão seco. O pavor que Hitchcock nutria por filmagens em externas não sai por menos, e aqui se mostra sintomático, quando se quer o tempo bom se tem chuva, quando se quer chuva se tem o céu mais limpo. Afora isso – que já não é pouca coisa –, a equipe de fotografia brigava para iluminar a cena, que se passava à noite e no meio da rua, com um parque de luz não tão abundante.

A primeira movimentação no set já indicava uma filmagem difícil. Mas, que filmagem no meio da rua, com pouco dinheiro (ou seria com quase nenhum dinheiro? Como Godard filmou Acossado, quando não tinha dinheiro nem para comprar uma passagem de metrô) e à noite não é difícil? Ainda assim, esta era só a ponta do iceberg. O roteiro ainda pedia uma seqüência com um cachorro (que fora filmada um dia antes) e vários outros planos onde alguns carros passavam rente à cabeça do personagem estatelado no chão. Para um dos diretores d’O Plano do Cachorro, Arthur Lins, “o que no roteiro é um plano simples, um filme simples, no set você percebe que até a simplicidade exige muito trabalho, muito esforço”. Ainda mais quando você filma sem grana e em esquema de guerrilha. Neste caso (e talvez em todos os casos do cinema paraibano) o único esquema possível.


A idéia d’O Plano do Cachorro surgiu em uma noite de outubro de 2007 de uma vez só. Arthur Lins pensava compulsivamente em um filme que estivesse carregado de seus elementos estéticos e temáticos favoritos e que, segundo ele, não se encontravam facilmente no cinema paraibano: “Seria um filme que retratasse o universo urbano da madrugada, que causa medo, tensão e angústia, mas que ao mesmo tempo ressalta a solidão da cidade, a aspereza das relações entre as pessoas”. Enfim, Arthur buscava uma boa idéia para uma ficção em película que pudesse também ser um filme simples do ponto de vista de produção, e que tratasse de “desejos mórbidos, violência gratuita, cachorros vadios perambulando pela madrugada”.

O título do filme, O Plano do Cachorro, foi roubado do genial diretor norte-americano Sam Peckinpah – dono de obras-primas como: Meu Ódio Será sua Herança, Pistoleiros do Entardecer e Sob o Domínio do Medo, isso para ficarmos em apenas três exemplos –, que logo após filmar seus tiroteios, normalmente mais homéricos do que Ilíada, caía fora do ser ordenando ao diretor de fotografia: “agora, filma o plano do cachorro!”, um simples plano de cobertura, que Bloody Sam poderia utilizar a qualquer momento na montagem de suas magníficas cenas de ação.

O passo seguinte de Arthur foi procurar o parceiro Ely Marques e começar a desenvolver o roteiro; o que não demorou muito, pois logo eles maturaram a idéia e apararam as arestas, partindo direto para a segunda etapa (o terror de todo produtor independente): levantar a produção.

A princípio o negócio seria filmar em 35mm, aproveitando as latas de película cedidas pelo CTAV que Arthur e Ely receberam como prêmio pelo O Fazedor de Filmes (curta anterior dos diretores) no Cineport de 2007, e o equipamento de iluminação da QUANTA, outro prêmio que O Fazedor recebeu, só que dessa vez no Cine Esquema Novo, também de 2007. Porém, os altos preços de aluguel de uma câmera 35, somados à burocracia de conseguir a câmera emprestada no CANNE (Centro Audiovisual Norte e Nordeste) e a dificuldade de financiar o restante do orçamento do filme através de editais e incentivos (o projeto foi inscrito no FIC e no Fundo Municipal de Cultura de João Pessoa sem sucesso algum, o que terminou por atrasar, e muito, a produção do filme) obrigou-os a diminuir 19mm da película a ser usada, buscar a Arriflex 16mm da UFPB e iniciar o cronograma de produção.

Cansados de esperar pela bem aventurança do Governo, Arthur e Ely decidiram pela possibilidade mais urgente: levantar a produção no braço. Tomaram tal decisão no último mês de setembro e as filmagens foram marcadas para os dias 12, 13, 14 e 15 do mês seguinte. O pouquíssimo tempo entre a tomada de decisão e a filmagem foi superado – não sem dificuldades, é claro – com a ajuda do coletivo audiovisual Las Luzineides, que topou tomar parte no filme, ajudando a levantar a produção e buscando os apoios necessários para preparar a filmagem.


É aí que reside o trabalho duro de verdade, não que pensar o roteiro, mexer nos equipamentos e ensaiar os atores seja trabalho simples, mas correr atrás de estrutura para organizar um set, definitivamente, não é nada fácil. Conseguir a alimentação, o transporte, os equipamentos e a estadia de mais de vinte pessoas – uma equipe pequena, diga-se – é complicado, e as coisas pioram ainda mais quando o dinheiro é escasso e quando todo e qualquer detalhe fazem a diferença – vide a chuva que caiu no primeiro dia de filmagem e o caminhão pipa que foi obrigado a aparecer no último dia.

O SEBRAE-PB, o CTAV, a Quanta, a ABD-PB, a produtora Canário, a Flamboyant, a Vídeo Store, a Energisa, a FUNJOPE (Fundação Cultural de João Pessoa) e a Universidade Federal da Paraíba entraram como apoiadores do filme, garantindo apoios básicos para produção. Logo após garantir tais suportes, a produção d’O Plano do Cachorro começou a pensar em uma equipe que encarasse o projeto como algo coletivo e que, principalmente, topasse trabalhar sem receber dinheiro algum. Com isso, Arthur, Ely e Las Luzineides não tiveram maiores problemas. Conseguiram uma equipe muito bem preparada, que contou com o ator Nanego Lira, que atuou em O Grão, filme de estréia de Petrus Cariry, e com alguns dos melhores técnicos da Paraíba, como o diretor de fotografia João Carlos Beltrão e o diretor de som Guga S. Rocha. Vencidas as etapas de pré-produção, é hora de voltar-se para o set.


Depois de o caminhão pipa ensopar o asfalto da Maciel Pinheiro, de determinarem a marcação de luz da cena, de ajustar os detalhes de figurino (era preciso molhar a barra da calça do ator já que o chão estava encharcado), de ensaiar várias e várias vezes e de três takes batidos, os diretores e a equipe conseguiram matar o primeiro plano da noite. Também não havia maiores possibilidades de refazer ou mudar algum detalhe da cena, Arthur e Ely só dispunham de 10 rolos de película e O Plano do Cachorro está previsto para durar dez minutos, ou seja, para cada plano que fosse filmado, este só poderia ser re-filmado três vezes. Contingência de produção, resta aprender a lidar com ela.

As filmagens das cenas seguintes, grande parte complemento da seqüência do plano anterior, desenrolaram-se de forma parecida ao primeiro plano rodado: muita espera, preparação e ensaio antes de filmar o primeiro take. Variavam-se entre campos e contracampos do que parecia um silencioso duelo de olhares de olhares e gestos entre os personagens de Nanego Lira e Flávio Melo e planos que incluíam um Maverick 75 branco – que também foi ator/personagem no curta Cão Sedento de Bruno de Sales. Nas minhas contas (vocês sabem que a memória é algo que escorre pelos dedos, que não dá pra confiar totalmente) filmaram uns quatro planos do Maverick: dois do carro correndo a Maciel Pinheiro, cada um de um lado da rua; uma subjetiva do carro e outro plano do Maverick passando rente ao corpo de Flávio Melo deitado no chão.

Essa contagem de planos que fiz aí em cima, que um ser humano leva uns quarenta segundos para ler, tomou quase a noite toda. Quando fui olhar pro relógio novamente, os passarinhos já cantavam – se bem que em João Pessoa os passarinhos têm o costume de começar a cantar às duas da madrugada – e já faziam seis horas que eu tinha chegado à Maciel Pinheiro. A noção de tempo em um set de filmagem se dilata e se contrai simultaneamente, da mesma forma que tudo é extremamente demorado e gira em torno de uma grande espera para que cada atividade do set se organize, o tempo é escasso para a quantidade de coisas que se tem para fazer, terminando por esvair-se sem que você possa se dar conta totalmente.

Àquela hora da manhã, o cansaço batia e o corpo começava a pedir arrego – imagina o de quem estava nessa desde domingo (o último dia de filmagens se deu numa quarta-feira), das sete da noite às sete da manhã, João Carlos Beltrão, por exemplo, ficou quarenta e oito horas seguidas sem dormir –, mesmo assim ainda faltava uma única cena para rodar, colocada propositalmente, acredito eu, para o fim da madrugada do último dia de filmagem, já que os atores e a equipe teriam que subir correndo (várias vezes, é claro, mais de um plano e obviamente mais de um take) a ladeira da Cinco de Agosto, uma ruela pequena, estreita e escura que desemboca no fim da Maciel Pinheiro.

Da corrida de Nanego e Flávio a equipe filmou seis planos: um no qual João Carlos Beltrão, sentado na mala de um carro, filmava os atores subindo a ladeira; outros dois planos com a câmera fixa no chão para pegar os pés dos personagens; mais um plano em que Beltrão com a câmera no ombro corria atrás de Nanego e Flávio; outro plano para pegar as sombras dos intérpretes no chão; e por fim – agora não mais na ladeira da Cinco de Agosto, mas na Maciel Pinheiro – planos próximos e closes dos personagens.

A correria foi acabar quando o sol já havia nascido. Porém, as filmagens d’O Plano do Cachorro ainda não tinham terminado, faltava gravar o áudio da cena anterior, já que o diretor de som e o seu assistente não acompanharam a filmagem desses planos. Nanego e Flávio esbaforidos terminaram indo descansar e foram substituídos por Ivanildo Gomes – o personagem principal d’O Fazedor de filmes, que estava trabalhando de assistente de set – e Bruno de Sales – assistente de fotografia –, que correram pela Maciel Pinheiro no lugar dos atores.

Agora sim, fim das filmagens, mas não da produção d’O Plano do Cachorro. Além de desmontar, guardar e devolver todo o equipamento (de fios até o set de luz cedido pela QUANTA) utilizado no filme – a desprodução, como é chamada – começava também o momento de se preocupar com a finalização do curta. Talvez a etapa de produção que mais venha a dar dor de cabeça a Ely, Arthur e Cia.


Foi só quando o projeto d’O Plano do Cachorro não foi aprovado em nenhum edital que Arthur e Ely resolveram bancar a produção do filme. Os prêmios que receberam e os apoios que conseguiram ajudaram a financiar a filmagem e parte da finalização. O restante necessário para finalizar o curta “à altura do esforço de todos na produção e captação”, como bem disse Ely Marques, até o momento não existem e a equipe de produção vai ter que correr muito para levantar a grana.

Para a etapa de finalização, Arthur e Ely contam com uma parte da premiação que receberam do CTAV para iniciar o processo de pós-produção. A revelação da película 16mm já está garantida, mas só pode ser feita em laboratórios no sul do país, portanto falta o dinheiro para a passagem de avião e a estadia para que pelo menos um dos diretores possa acompanhar o processo de finalização do filme – que não se resume unicamente a revelação da película. Além da viagem, a produção d’O Plano o Cachorro terá que bancar o financiamento para outras etapas de finalização Falta conseguir o dinheiro para o telecine do filme, processo que passa a película para vídeo; a transcrição ótica do som na película; e o blow-up do 16mm para o 35mm – tipo de película padrão para captação e exibição profissionais de cinema.

Não há nenhuma data definida para concluir a produção d’O Plano do Cachorro. A idéia é tê-lo pronto para exibição em Janeiro ou Fevereiro de 2009, mas ninguém pode dizer ao certo se isso vai ou não acontecer. No momento em que fechamos essa edição a película estava para ser revelada e não havia grandes mudanças no panorama de financiamento da pós-produção.


As contingências de produção continuam atacando e transformando as produções independentes da Paraíba – aliás, do mundo inteiro –, tornando os esquemas de guerrilha (detonados como modelo de produção independente na Nouvelle Vague francesa da década de 60) para a captação e produção de filmes como quase que a única possibilidade para se filmar com liberdade aqui na Paraíba, já que pouquíssimas pessoas conseguem financiamento através de editais.

(Muitos desses editais, como o FIC e o FUMUC, são abertos a todo tipo de manifestação artística, o que gera um problema a priori, já que o esquema de produção e financiamento de cinema é muito mais custoso e difícil que qualquer outra forma de arte, necessitando de editais e esquemas de financiamento próprios. Talvez esteja na hora de começarmos a pensar em uma articulação para editais voltados exclusivamente para o audiovisual).

Um exemplo para o domínio do esquema de guerrilha na Paraíba está na quantidade de produções que foram e serão viabilizadas dessa maneira. No fim de 2007 e começo de 2008, Ronaldo Nerys e Helton Paulino realizaram seus filmes (As Bonecas de Davi e Terra Erma, respectivamente) neste esquema, quase sem nenhum apoio, financiado do próprio bolso. Agora no fim de novembro Bruno de Sales vai abrir uma guerrilha própria, iniciando uma produção (as barricadas serão abertas na Bica em João Pessoa), também filmada em película (só que em 35mm) e também filmada como Godard filmou Acossado, ou seja, com quase nenhum dinheiro. No último mês de 2008, Jhésus Tribuzi segue no mesmo caminho e vai abrir suas barricadas e levantar uma produção em insanos esquemas de guerrilha.

Para além do romantismo de filmar de maneira independente e com pouquíssimo dinheiro, produzir em esquema de guerrilha aqui na Paraíba, ao que parece, é a única forma de se produzir, e só quem trabalha assim sabe o quão infortúnia (sem trocadilhos) é uma situação como essa, mesmo que ninguém vá deixar de filmar por causa disso.

Por fim, Arthur Lins resume muito bem a situação: “Acho que o fazer cinema já é difícil e complicado por natureza. Em um processo mais convencional de se fazer ficção em película ou com a estrutura de produção costumeira de um set, como foi o caso d’O Plano do Cachorro, precisa-se de muita gente, muita mão de obra, e junto com isso, é comida, transporte, equipamentos, enfim muito esforço. No nosso caso, tem o lance de fazermos o curta sem a grana suficiente, apenas com apoios logísticos mínimos, então é complicado você deslocar as pessoas para trabalhar das sete da noite até às sete da manhã do dia seguinte e saber que todos ali têm outras coisas pra fazer no dia seguinte. É algo que é muito bonito e romântico no plano das idéias, do cinema de guerrilha, independente, mas na prática é algo realmente difícil, e aí você percebe que cinema se faz com grana mesmo, com idéias e vontade também logicamente, mas o fator dinheiro ainda é determinante. Acho que grandes filmes deixarão de ser feitos por falta de dinheiro. Não só aqui, mas no mundo todo”.

Ramon Porto Mota. Guerrilha na Maciel Pinheiro. In A Margem, Ano 2, nº 11. Campina Grande, PB: novembro/dezembro 2008, p. 9-11.

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

História recente do graffiti

Maria Luiza Viana e Piero Bagnariol

Grafite e graffiti

O grafite (ou grafita) é um mineral composto de carbono e usado na fabricação de lápis ou como lubrificante. Por suas propriedades isolantes é empregado também nas centrais termonucleares para regular os processos de enriquecimento do urânio.

O termo italiano graffito deriva do latim graphium, um estilete de ferro ou bronze utilizado para escrever sobre tábuas de cera. A forma plural, graffiti, foi empregada a princípio para designar as inscrições gravadas na pré-história e na antiga Roma. Em 1965, antes que a palavra graffiti fosse utilizada para definir as pichações com spray, o Dizionario Garzanti da língua italiana(1) indicava graffiti como uma “técnica de incisão em muro que consiste em trazer à tona, ao longo da linha de incisão, o fundo escuro por trás da argamassa branca”. Para este autor a palavra seria uma derivação do verbo italiano graffiare (arranhar), cuja origem é uma palavra da antiga língua alemã: krapfo (gancho), que indicava uma alabarda utilizada no assalto às muralhas das cidades sitiadas.

Durante muito tempo, o termo teve uma conotação pejorativa designando genericamente rabiscos de banheiro, palavrões e desenhos obscenos. Nos anos 70 a palavra graffiti começou a ser empregada para indicar as modernas pinturas feitas com tinta spray. O idioma inglês adotou então a forma italiana plural, sem distinção de número.

Nesta época o vocábulo passou a ser empregado também para qualificar um determinado contexto histórico: o dicionário Zingarelli(2), de 1996, remete graffiti a “um sentimento nostálgico por uma maneira de vida de um recente passado (os graffiti dos anos 60)”. O filme American Graffiti, de George Lucas (EUA, 1972), contribuiu para que o termo passasse a designar, de forma mais ampla, essa época marcada pela rebeldia juvenil.

A palavra italiana graffiti deu origem também à forma adotada pelo idioma português: grafito ou grafite (singular) e grafites (plural) que designam as inscrições antigas, riscadas com instrumentos pontiagudos ou carvão sobre rochas e paredes. Adotamos aqui, de maneira geral, a forma portuguesa, já que desde 1987 o dicionário Aurélio(3) registra grafite como inscrição urbana. O termo italiano foi empregado especificamente para indicar o graffiti como fenômeno cultural e os movimentos ligados a esta manifestação.


Graffiti e contestação

Os anos 60 foram marcados por uma intensa efervescência política e cultural em todo planeta. Movimentos juvenis surgem em vários cantos do mundo questionando criticamente as guerras imperialistas, o totalitarismo, a massificação da sociedade industrial, e os tabus culturais e morais. Uma nova geração passa a acreditar que as soluções para as dificuldades do futuro não são absolutamente técnicas, mas também políticas e passa a propor mudanças sociais e culturais na busca de soluções alternativas frente às contradições da modernidade.

Em Maio de 1968, os estudantes universitários e secundaristas reivindicam em Paris a reformulação nos currículos e métodos de ensino. Criticavam o autoritarismo e a política das nações dominantes e as conseqüências da ascensão do capitalismo na França e no resto do mundo. Os estudantes ocupam as ruas e universidades de Paris e outras cidades em confrontos que acabam desencadeando uma espécie de guerrilha urbana, com barricadas, cartazes e panfletos(4).

Nas paredes da Sorbonne os grafites cobrem os muros e atacam os monumentos protegidos por avisos de defense d’afficher (proibido colar cartazes). Nas universidades, poemas e reflexões filosóficas contra o estabilishment são pintadas com piche e cartazes. No mês seguinte, aproveitando a época de férias, as paredes da faculdade são repintadas. A breve duração e a intensidade do movimento tem repercussão internacional. A revolução de comportamento espalha-se pelo mundo repercutindo inclusive no Brasil.

Reproduzimos aqui algumas destas inscrições francesas, coletadas por Julien Besançon e publicadas no Brasil por Cristina Fonseca no livro Poesia do Acaso(5): “A imaginação no poder”; “Viver sem horas mortas, gozar sem entraves”; “A mercadoria, nós a queimaremos”; “A felicidade é o poder estudantil”; “A humanidade só será feliz, no dia em que o último burocrata, for enforcado nas tripas do último capitalista”; “É estritamente proibido proibir”; “Você está sendo intoxicado: rádio, televisão, jornal, mentira”; “Corra camarada, o velho mundo quer te alcançar”; “Sejamos realistas. Exijamos o impossível” e “Eu não gosto de escrever sobre os muros”.

Vários movimento juvenis se manifestam nesta época na Polônia, Alemanha, Itália, Bélgica, Argentina, Chile, México, Espanha, Japão e em diversos outros cantos do mundo. Lutas estudantis antiautoritárias e antiimperialistas culminam em violentas batalhas de rua. Na Tchecoslováquia, em 1968, jovens fazem coquetéis molotov e atiram nos tanques russos que invadiam o país, pintavam nas paredes de Praga frases como “Lenin, desperta! Eles enlouqueceram”(6).

No Brasil, a juventude, a exemplo da França e dos outros países, também se manifesta contra a ditadura militar. Frases políticas ocupam as paredes das principais cidades.


Arte, cultura e grafite: anos 60 e 70

No campo das artes plásticas surgem diversas tendências artísticas que questionam a sociedade industrial e de consumo, a propaganda e a cultura de massa. Esses movimentos trazem à tona a questão da arte, seu papel social e sua relação com o mercado e com os espaços institucionais que ela ocupa, como museus e galerias. A pintura neste período rompe com a estética abstrata predominante nos anos cinqüenta e aponta para uma nova tendência figurativa, com a reintrodução da representação icônica. O Novo Realismo que surge na França propõe um olhar sobre a natureza moderna: a cidade, a fábrica, a cultura de massa, a ciência e a técnica(7).

Sob o impacto da cultura popular urbana e da comunicação de massa, nasce por volta de 1957 em Londres, a Pop Art, corrente que se consolida nos anos sessenta nos Estados Unidos a partir das experiências de apropriação das imagens da indústria cultural, da sociedade de consumo e do uso de novas tecnologias(8).

É também neste período e nos anos setenta que se intensificam as manifestações públicas (happenings) integrando a combinação de várias linguagens artísticas: pintura, escultura, teatro, dança, poesia, música instrumental, rituais mágicos, com a liberação sexual e o protesto político, buscando uma integração entre arte e vida(9).

No campo da poesia o movimento beatnik, reunindo principalmente poetas e escritores nos EUA, já propunha desde a década de cinqüenta uma rejeição aos moldes da poesia acadêmica com o objetivo de questionar as normas fixas entre poesia e não poesia e recuperar a tradição oral improvisando frases, fundindo jazz, corpo, mente e sentidos, rompendo os limites entre arte e experiência diária e aguçando a consciência política e religiosa(10). Estes artistas tornam-se referência para diversos movimentos culturais que surgem posteriormente, como no caso do rap que irá mais tarde fundir fala improvisada e batida eletrônica(11).

Neste contexto, os grafites urbanos que surgem em meados dos anos 70 tomam uma nova dimensão, constituindo um poderoso e criativo discurso visual juvenil, ancorado nas questões colocadas pelos movimentos artísticos das décadas anteriores, propondo novas formas de relacionar arte, política e questões sociais.

Frases poéticas ou políticas, nomes, pseudônimos e endereços, além de desenhos e grafismos denunciam a necessidade da criação artística autônoma no espaço urbano, legitimando a rua como espaço vital para a liberdade e a expressão. Ao ocupar as ruas os grafites colocam em questão o acesso à cultura e o mercado de arte que aprisiona as obras em museus e galerias.

Assim como nos happenings, a escrita nos muros se transforma em espetáculo público, em ritual, envolvendo música, dança, performance e protesto, no caso do grafite inserido no movimento hip hop(12).


Década de 80, Graffiti Art: rumo às galerias

Em Nova Iorque o panorama das artes plásticas nos anos oitenta foi marcado pelo retorno de vários artistas à prática da pintura e pelo restabelecimento do mercado da arte depois das aventuras neoconceituais dos anos anteriores.

O neo-expressionismo alemão e a bad-painting vêm assinalar ainda mais este regresso à pintura, na espontaneidade do gesto e aos grandes formatos das telas. A avidez de colecionadores e marchands e um crescente processo de mundialização da arte norte-americana provoca o interesse mundial por novas linguagens que sintetizassem várias sensibilidades artísticas e atitudes sócio-políticas. Aos poucos o grafite ganha força e espaço na mídia e iniciativas são tomadas com o objetivo de levar a linguagem das ruas para os ateliês.

O East Village, pólo aglutinador da vanguarda artística e da boemia nova-iorquina, foi de fundamental importância nesse contexto, na medida em que lançou no mercado de arte vários artistas cuja origem era o grafite de rua, promovendo a inserção desta manifestação no mercado de arte(13). Para absorver esta produção foi criada uma rede de galerias em 1981. A primeira delas, a Fun Gallery, fundia artes plásticas, música e dança e impulsionou a carreira de artistas como Jean-Michel Basquiat, Keith Haring, Kenny Scharf, James Brown, Ronnie Cutrone e outros grafiteiros que voltam suas produções para o mercado de arte e tornam-se artistas internacionalmente conhecidos, ganhando fama e projeção internacional(14).

Os anos 60 e 70 passaram, e aprendemos com eles novas formas de entender o mundo e agir sobre ele. Trouxeram novas formas de comunicação, de configuração do espaço urbano e um novo ator social: o jovem. Os grafites permaneceram não mais políticos e nem tão bem cotados nas galerias, mas sua estética permanece imposta claramente na moda e nos meio de comunicação dos anos 80 e 90.
Talvez o grafite seja uma das formas de expressões do nosso tempo que melhor sintetize a arte, a juventude e a rua.


A onda nova-iorquina

O graffiti produzido em Nova Iorque no final dos anos 60 se difunde pelo mundo inteiro nos anos 80, agregado ao movimento hip hop. Inscrições de caráter político já existiam nos EUA, inclusive sobre vagões de mercadorias, pelo menos desde a década de 30(15).

Ao contrário do fenômeno parisiense de maio de 1968, estas inscrições não tinham conteúdo político ou filosófico. Em sua maioria tratava-se de nomes, pseudônimos e endereços de adolescentes que, ao divulgar sua própria (logo)marca, se apropriavam de meios e modelos utilizados pela sociedade de consumo.

A idéia de escrever ostensiva e repetidamente o próprio nome pela cidade parece ter partido de dois jovens de Filadélfia. Mas foi em Nova Iorque que esta prática iria se consagrar definitivamente a partir das pichações deixadas nas estações metropolitanas de trens, principalmente pelos jovens da periferia.

Em julho de 1971, quando o significado de inscrições como JULIO 204 ou CHEW 127 e FRANK 207 já intrigava os passageiros dos metrôs, o jornal The New York Times publica um artigo sobre um jovem do bairro Washington Heights, Demetrio, que em suas andanças pela cidade como office-boy deixava sua marca, TAKI 183, espalhada por toda parte(16). A reportagem, que contribuiu para consagrar para sempre este pichador, teve uma forte repercussão e acabou por incentivar a prática. Não demorou muito para que centenas de jovens deixassem espalhadas suas assinaturas pelas paredes e trens de Nova Iorque.

Começa então uma competição para espalhar o maior número de assinaturas nos vagões de metrô. É o bomb, “bombardeio” (sobre os termos empregados aqui ver o glossário dos grafiteiros à pág. 166). Na disputa para destacar a própria marca entre tantos nomes, os jovens começam a desenvolver grafias originais e estilos característicos, os chamados tag. Nas inscrições aparecem contornos, as letras tornam-se maiores, alargadas, decoradas com motivos internos. As letras, executadas rapidamente com poucas cores (geralmente uma para o contorno e outra para o preenchimento), ficam conhecidas como throw-up, literalmente “vômito”.

As possibilidades oferecidas pela lata de spray (aerosol spray can: o protótipo do spray foi patenteado ainda em 1927 pelo norueguês Erick Rotheim, a lata com tinta é de 1949)(17), como transporte e manuseio fácil, agilidade nos movimentos, possibilidade de realizar inscrições de efeito como o esfumado, faz da lata o instrumento preferido dos grafiteiros. A possibilidade de aumentar ou diminuir o volume do jato de tinta empregando válvulas intercambiáveis de outros produtos, leva à produção da masterpiece, técnica atribuída a SUPER KOOL 223, que teria realizado também o primeiro whole car, ocupando a superfície inteira do vagão.

O reconhecimento da paternidade desta ou daquela tendência do “graffiti hip hop” é subjetivo. É difícil saber quem foi o primeiro autor de um determinado estilo. De qualquer forma, FLINT 707, PEAR 136, PEL, HONDO 1 e SNAKE 131 são nomes sempre citados na primeira fase do graffiti nova-iorquino. Entre as letras mais conhecidas a Broadway teria sido criada na Filadélfia por PAN DE MAIZ e levada para Nova Iorque por TOPCAT 126(18). Já a letra bollet (ou softie letter) foi elaborada por PHASE 2 e o estilo “3D” por PISTOL, dentre outros. O acréscimo de serifas, setas e espirais é a base do wild style (estilo selvagem), um dos mais complexos tipos de grafite que surgiu durante a “guerra de estilos” entre os autores. Dentre os mais combatentes vale a pena lembrar RIFF 170.

O maciço “ataque” aos trens, operado até começar a repressão dos grafites nos vagões por parte das autoridades no final dos anos 70, foi uma verdadeira guerrilha urbana. O horário dos trens era meticulosamente observado. Para a realização dos grafites, feitos geralmente à noite, os jovens muitas vezes corriam risco de vida. Para definir suas ações ilegais, os autores passaram a empregar uma linguagem específica, impregnada de termos bélicos como bomb e attack (“ataque” ou “detono” aqui no Brasil).

Apesar das inscrições norte-americanas privilegiarem o aspecto estético e formal das letras mais do que propriamente o conteúdo ou a mensagem contida na inscrição, os autores se definirão como writers, escritores. As obras são chamadas por termos como piecing (peça) e writing (escrita). Com o estudo desta manifestação por parte de jornalistas e pesquisadores, o termo graffiti, até então empregado para indicar as inscrições da antiguidade, passa a designar as escritas nova-iorquinas(19).

Em 1974, quando o movimento se consolida, ao lado das escritas aparecem os primeiros desenhos, cenários e recursos visuais próprios das HQ, realizados por autores como BLADE ONE, CLIFF 159 e AJ 161(20). O throw up é espalhado por crews (galeras) que se autodenominam com siglas como TC (The Crew), POG (Prisioneers Of Graffiti) e 3yb (Three Yard Boys). DOC, MONO, SLAVE e LEE, do consagrado TF5 (The Fabulous Five), chegam a cobrir um trem de dez vagões, uma empreitada rara.

No final da década de 70, CHAIN, DONDI, DAZE e FUZZ ONE, dentre muitos outros autores que integram as centenas de crew da cidade, são a última geração de writers a deixar sua marca nos trens da IRT (Interborough Rapid Transit), uma divisão do metrô de Nova Iorque. Em seguida as autoridades do trânsito metropolitano, o MTA (Metropolitan Transit Authority), intensificam o programa de remoção dos grafites dos vagões (the Buff) retirando de circulação e limpando rapidamente os trens(21).

A repressão intensa e as leis rígidas baixadas nos anos 80 apagam um pouco a febre. Muitos writers são obrigados a procurar atividades alternativas e alguns são cooptados pelo mercado. O convívio com as galerias de arte já tinha sido uma experiência bem sucedida quando, nos anos 70, tinham funcionado organizações como a UMA (United Graffiti Artists, 1972) e a NOGA (Nation Of Graffiti Art, 1974), espaços promovidos pelo sociólogo Hugo Martinez e pelo ator Jack Pelsinger, respectivamente(22).

Os grafites passam então a gozar, durante um certo tempo, da atenção das galerias de arte. A princípio junto aos grupos underground, e em seguida com a sociedade e as instituições em geral, o grafite encontrará na Europa do final dos anos 80 um ambiente mais receptivo que o das metrópoles dos EUA. As bases estilísticas do graffiti norte-americano são assimiladas rapidamente pelos autores europeus, que renovam e consolidam este meio como uma tendência mundial.

Os grafites de rua começam a ser fotografados e aparecem ensaios e livros como Subway Art (1984) de Henry Chalfant e Martha Cooper, e chegam ao cinema com o filme Style Wars (1983), dirigido por Tony Silver. O estilo e a técnica dos grafites nova-iorquinos alcança também outros países através das fitas, filmes, revistas e fanzines que promoveram a difusão maciça do movimento hip hop.

Em 1987, no livro Spraycan Art, Chalfant e James Prigoff documentam a difusão mundial da arte do sparay(23).


O movimento Hip Hop

No final dos anos 60, a juventude negra e hispânica das periferias de Nova Iorque sofria com o agravamento de sua condição: aumento das tensões raciais, do desemprego e da criminalidade. A guerra do Vietnã agravava ainda mais a crise: os soldados, em sua maioria negros, voltavam do conflito mutilados e viciados em drogas. Cansados da violência e do descaso das autoridades frente as suas questão e em meio aos ideais pacifistas promovidos pelo movimento hippie e por personalidades como Martin Luther King, surgem entre os negros grupos de resistência pacífica.

Em meados da década de 60, o Black Power (Poder Negro) consolida o ativismo radical de alguns grupos conduzindo-os a uma nova consciência étnica, à conquista de direitos civis, políticos e econômicos(24). Do Black Power emergem os Black Panthers (Panteras Negras), grupo político que visava proteger e ajudar a comunidade negra norte-americana(25). Patrulhavam as ruas vestindo jaquetas de couro, boinas pretas e armados sob o amparo da lei que permitia o porte de arma de fogo a todo cidadão cuja integridade física fosse ameaçada. Defendendo uma comunidade discriminada e marginalizada nos guetos, reivindicavam a liberdade, a justiça, o direito ao emprego, à moradia, à terra e à educação.

Neste contexto surge o hip hop, movimento composto de música (tocada pelo disk jokey), dança (break), poesia ritmada (rap) e artes visuais (graffiti). A experiência política do Black Power repercute no movimento com a reivindicação dos direitos de uma classe social cada vez mais arrochada pelo desemprego e precariedade do sistema educacional. Era a situação de uma juventude excluída, principalmente dos bairros negros e hispânicos.

Na organização de festas de rua conhecidas como “bailes black”, o hip hop usava a criatividade, como a manipulação de um toca discos como instrumento, improvisando novas músicas sobre as bases já gravadas. Gestos fragmentados, ansiosos e acrobáticos, som frenético, martelador e sincopado, movimentos largos, rápidos e espontâneos dos sprays, fundiam novas tecnologias. O resultado é uma síntese de artes: poesia, música, dança, cenografia... Um grande happening metropolitano, reunindo inventividade, inovação e contestação, reafirmando a capacidade dos jovens de perceberem, combinarem e representarem diferentes elementos do domínio da arte(26).

A partir da Zulu Nation, organização não-governamental criada em 1973, pelo DK Afrika Bambaata, o hip hop se organiza e é reconhecido como cultura. Bambaata fundou a Zulu Nation para que não houvesse mais brigas e mortes entre os “irmãos de rua”(27). A proposta era substituir os conflitos entre as gangues que se confrontavam nos subúrbios por competições musicais de dança e de grafite. No Bronx estes encontros eram promovidos ao som dos sound-systems, aparelhos que contavam com dois toca discos, dois amplificadores e um microfone. O jamaicano Kool Herc introduziu as colagens de bases rítmicas, aproveitando os breaks das músicas e as primeiras narrativas feitas sobre estas bases. A partir de então, a atenção das festas se concentrou nas figuras do DK (discotecário) e do MC (mestre de cerimônia), dando origem ao rythm and poetry (ritmo e poesia), o RAP, com seu discurso de denúncia das questões de injustiça nos guetos(28).

O RAP promove um discurso verbal, às vezes improvisado por um conjunto de rappers, centrado na fala proferida ao ritmo da música. Eventualmente emprega as bases tradicionais de cinco notas da percussão africana.

A primeira música de que se tem notícia que misturava o vocal com a batida foi The lover In You, do grupo Sugarhill Gang(29), embora ainda não trouxesse o conteúdo de contestação característico do gênero.

O primeiro rapper a tornar-se conhecido foi Grand Master Flash. Ele lançou um single chamado The Message, uma música que só tinha uma batida ritmada e um texto que falava sobre a miséria da vida e sobre o que a América fazia com seus filhos negros.

O break-dance, estilo de dança performática que acompanhava as festas, nasce e cresce nos guetos seguindo o ritmo fragmentado da música. Inspirado nas performances de James Brown, o break sofreu variações sob a influência das lutas marciais difundidas pelo cinema e das diversas origens dos imigrantes que compunham a população do Bronx. Algumas coreografias remetiam ao movimento das hélices dos helicópteros da Guerra do Vietnã(30). Os dançarinos de break são chamados break boy e break girl, ou simplesmente b.boy e b.girl.


Glossário

O grafite hip hop mantém um vocabulário próprio, com termos específicos que são compartilhados por grafiteiros de diversos países do mundo, envolvendo atitudes, moda e estilos.

Tag: assinatura do nome ou apelido do grafiteiro. “Presa”, presença.

Bomb (bombardeio): produção intensa e maciça de escritos.

Bullet (boleta): letras arredondadas e “infladas”.

3D: o grafite tridimensional é, talvez, o estilo mais cobiçado entre os grafiteiros da new school. Explora o efeito tridimensional para dar volume a desenhos e letras.

Free style (estilo livre): trabalho livre, improvisado.

Throw-up (vômito) ou “grapicho”: estilo de rápida execução, conhecido por usar poucas cores contrastantes, geralmente duas.

Cap: o bico de lata. Existem vários tipos, podem soltar um jato fino (skin cap, ou skinny) ou largo (fat cap ou hardcore).

Fanzine (abreviação de fanatic for magazine: fanático por revistas): revista produzida de forma independente, geralmente fotocopiada, que funciona como veículo de comunicação entre os grafiteiros.

Flick: uma foto de grafite.

Outline e powerline: linha de contorno que pode remeter a certos efeitos próprios da linguagem dos quadrinhos.

Piece: grafite realizado com primor ou que ocupa uma área delimitada.

Piece Book: livro com desenhos, tags e rascunhos do grafiteiro.

Toy (brinquedo): expressão utilizada para indicar um principiante ou alguém que grafita apenas por moda.

Whole car: grafite que ocupa a fachada inteira do vagão. Pode ser de cima abaixo (top to top) e de fora a fora (end to end).

Wild style (estilo selvagem), ou tribal: estilo complexo, agressivo, composto por letras entrelaçadas entre si através de setas e traços retorcidos. Característico da old scholl, o wil style é considerado um dos estilos mais difíceis de se fazer.

Hip e hop são gírias norte-americanas: hip é a abreviação de uma outra gíria, hipster (pessoa atualizada com modismos, manias) e hop significa: baile, viagem, ir-se(31).


Dois casos brasileiros: São Paulo e Belo Horizonte


No Brasil ocorreram, na década de 60, movimentos sociais organizados por estudantes universitários que reivindicavam melhorias no sistema educacional. A partir de 1964, a ditadura militar impôs restrições às manifestações estudantis e de outros segmentos da sociedade. As lutas se intensificaram, fazendo crescer os conflitos nas ruas sob o poder do porrete, da prisão e da tortura.

Os estudantes representavam a insatisfação de amplos setores sociais e, juntamente com os artistas, desempenharam importante papel neste contexto, utilizando-se da música, teatro, poesia e artes plásticas como formas de protesto(32). Pichações apareciam da noite para o dia nos muros, fachadas e prédios públicos durante passeatas e ocupações. As mensagens eram frases diretas contra a censura, a tortura, o imperialismo norte-americano e aclamavam a insurreição e a luta armada.

No final dos anos 70, com o enfraquecimento da ditadura, o processo de abertura política no Brasil propiciou o retorno de atividades artísticas e manifestações culturais. Foi neste contexto que as pichações, desaparecidas com a repressão, reapareceram menos densas e mais poéticas. Frases enigmáticas e irônicas surgiram nas ruas, criando um jogo lúdico e imaginativo com a cidade: “Cão fila”, “Rendam-se terráqueos”, “Maria Clara, quero a gema”.

Em São Paulo, formam-se grupos de artistas e estudantes que exploram o potencial conceitual do grafite como forma de intervenção urbana. Sob a influência da Pop-Art norte-americana, aparecem no cenário urbano paulista as imagens de artistas como Carlos Matuck, Waldemar Zaidler e Alex Vallauri, que em seus trabalhos se apropriam de personagens das histórias em quadrinhos e outros símbolos da cultura de massa. Retiravam as imagens do seu contexto original imprimindo-as em lugares públicos, emitindo mensagens integradas ao ambiente urbano(33).

Vallauri em particular recupera uma técnica antiga, a stencil art (ou molde vazado, impressão realizada a partir de uma máscara recortada), empregada nos anos 30 pelos artistas da École de Paris(34). Sua produção chama a atenção da mídia e, em 1981, Vallauri participa da Bienal Internacional de São Paulo. Em 1985, volta à Bienal com a célebre “Festa na Casa da Rainha do Frango Assado”(35).

O TupinãoDá, outro grupo atuante em São Paulo nos anos 80, formado por estudantes do meio universitário, promove, em 1987, diversas intervenções urbanas de grande porte que se tornaram emblemáticas, como a grafitagem do túnel da Rebouças. Integrado, dentre outros, por Jaime Prades, Milton Sogabe, José Carratu e, mais adiante, Carlos Delfino e Rui Amaral, o TupinãoDá realizou obras politizadas e conceituais – a utilização de giz sobre fundo preto, com a qual se explora a efemeridade do meio, é uma delas. Em 1987, o grupo chega a ocupar o pavilhão anexo na Bienal(36).

As cabeças “africanas”, de John Howard, e os murais de Celso Gitahy, autor do livro O que é graffiti(37), são outros exemplos de grafites realizados por autores ligados às artes plásticas.

Nos anos 80, começam a aparecer também manifestações culturais ligadas ao movimento hip hop. Nos grandes centros do país, alguns jovens passam a se encontrar para dançar e trocar idéias sobre as referências da moda vinda de Nova Iorque. Alguns pontos, como a estação São Bento(38), em São Paulo, e o Sunday’s, em Guarulhos, tornam-se lugares conhecidos de encontro de b.boys, rappers e grafiteiros. Entre os autores fortemente influenciados pela estética hip hop estão Rooney, Def Kid, Zecão, Guerra de Cores, Kaze e, principalmente, Os Gêmeos, que com seu estilo inconfundível ganharam projeção internacional e continuam ativos, ainda hoje, ao lado de outros como Speto e Binho.

Em Belo Horizonte, que, assim como Brasília já era então um dos centos do hip hop mais ativos do Brasil, o desenvolvimento do graffiti acompanha as rodas de break e a difusão do movimento. A praça da Savassi (parte nobre do centro comercial da cidade), passa a ser um dos primeiros pontos de reunião onde, ao som de MC Pelé e do DJ Alberto, os jovens ensaiam em rodas de break os passos e o visual aprendido através dos primeiros videoclipes(39).

O filme Beat Street, dirigido por Stan Lathan, em 1981, tornou-se referência. Apresentando o dia-a-dia de um grupo de jovens do gueto de Nova Iorque ligados ao hip hop, e estrelado por personagens como Afrika Bambaata, Beat Street aborda o grafite através do conflito entre um grafiteiro, que acredita em suas intervenções sobre os trens como uma forma de arte, e um pichador, que atropela metodicamente tudo o que o outro faz(40). Assim como no filme, cada grupo de break em Belo Horizonte passou a ter um desenhista talentoso para estampar seus próprios trajes. Para alguns autores esta atividade chegou a se tornar até lucrativa.

Calças folgadas, toucas e roupas pintadas substituíram então as malhas listradas “tipo Adidas” e o cabelo black-power. Em algumas danceterias, os DJ’s trocaram o pacato som “charme” pela batida mais pesada do base e do daff abrindo espaço para os “rachas” de grupos como Break Crazy, do Padre Eustáquio (na região noroeste), e Bestie Boy’s, da Cidade Industrial.

Dentre os principais pontos de encontro à noite e no fim de semana estão a quadra poliesportiva do Vilarinho (na periferia ao norte da cidade), o Máscara Negra e, mais adiante, o terminal turístico JK (hipercentro).

Até o começo do movimento hip hop, as inscrições na cidade tinham sido predominantemente de caráter político. O cartunista Lacarmélio é apontado como um dos primeiros a realizar mensagens autopromocionais, espalhando pela cidade “Leia Celton”, ou simplesmente “Celton”, para divulgar as histórias do personagem homônimo, cujas revistas o autor vende ainda hoje, pessoalmente, nas esquinas de Belo Horizonte.

Pioneiro do grafite na cidade, o b.boy Dentinho, da Break Krazy, conta que se primeiro trabalho fora dos tradicionais pontos de encontro da galera no bairro foi no bowl do Anchieta(41) (bairro nobre da região centro-sul).

Por volta de 1987, os grafites de Dentinho, Ângelo, Beto, Prexeca, Silvinho, Sol, Ba, Nego, Vaguinho, GMC e Harllen, dentre outros, se alastram pelos muros dos bairros Carlos Prates, Caiçara, Cabana, Venda Nova e Planalto, nas regiões Noroeste, Norte e Oeste. Ângelo (AJ) e Dentinho contam que, quando ainda não existiam grafites no Centro, saíram carregando dois painéis de madeirite grafitados da rua Padre Eustáquio até a avenida Afonso Pena (da região noroeste ao centro). Ali amarraram os painéis na grade do Parque Municipal(42).

De maneira geral, os throw-up desta época eram constituídos por palavras aleatórias, tiradas de algum rap ou deixadas por autores inspirados que assinavam com spray, material então difícil de se conseguir e, teoricamente, fora do alcance dos adolescentes. O estilo e as referências pessoais de cada um complementavam o escasso material que aqui chegava através de capas de discos e filmes. Uma fonte importante de informação eram os relatos dos brasileiros que voltavam de Nova Iorque, como o grafiteiro Erick, de Governador Valadares. O intercâmbio com São Paulo, onde circulavam mais notícias e já atuavam figuras como DJ Thaíde, então b.boy da Back Spin Crew, também contribuiu para o desenvolvimento do movimento em Belo Horizonte.

Nos anos 90, os grafites passam a ser realizados em pontos significativos do centro da cidade. Em 1991, GMC realiza um grafite na escadaria da SULACAP (centro) como homenagem ao MC Natal (Natalício), falecido naquele ano. Em 1994, o mesmo GMC grafita o salão Preto e Branco, na galeria da Praça 7 (no centro).

Os proprietários desse salão promovem, dois anos depois, o evento Grafitando BH, com um debate e uma intervenção na Praça da Estação (centro), nas paredes do Projeto Miguilim. Convidados como OsGêmeos, de São Paulo, e os principais grupos da cidade participam da iniciativa. Dentre eles: Harllen, Bin, Crazy Boys, Posse Sta. Luzia, além de veteranos como GMC, Dentinho, Ginho e Vaguinho, integrantes da crew Arte e Graffiti. Do evento participa também a Flit, grupo mais ligado ao ambiente universitário e às experiências paulistas com molde vazado. A busca pelo diálogo com diferentes suportes levará os integrantes da Flit à publicação da revista Graffiti 76% quadrinhos.

A partir da segunda metade dos anos 90, a popularização do fenômeno grafite-pichação atinge a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) que, num primeiro momento, tenta inibir a prática reprimindo os infratores, em sua maioria menores de idade. A Lei n. 6.995, de novembro de 1995 proíbe a pichação, considerada como “o ato de inserir desenhos obscenos ou escritas ininteligíveis nos bens móveis ou imóveis (...) sem autorização do proprietário, com o objetivo de sujar, destruir ou ofender a moral e os bons costumes”. Apesar de prever detenção e multa, a nova lei não conseguiu inibir o problema.

“A pichação é uma escrita aparentemente sem memória e conteúdo. Temos que aprender a ler esta escrita. Estes jovens estão querendo dizer alguma coisa”. Em 1999, a partir desta interrogação do doutor Célio de Castro, então Prefeito de Belo Horizonte, a PBH busca um diálogo com grafiteiros e pichadores, criando o Projeto Guernica. Pela “via do conhecimento, da arte e da escuta”(43), o Guernica realiza oficinas em diferentes áreas da cidade e promove uma reflexão acerca do patrimônio e do visual urbano.

O sucesso da exposição American Graffiti, realizada em 1998 no Palácio das Artes, fomenta a realização, ainda no ano seguinte, de um concurso que premia e expõe no mesmo espaço os trabalhos dos numerosos autores locais.

No mesmo ano, cerca de 140 jovens se encontram no Instituto de Educação para fundar a AMG2, “Associação Mineira de Grafiteiros”.


Pichação e graffiti

(...) compravam latas, latas, latas. Assim, e não parava com a ‘parada’ no dia, andando. Cinco horas da manhã e voltava pra casa, com o dedo descolado, assim, sem a tampa do dedo porque chegou a colar no pires, de tanto pichar.
Peninha(44)

À diferença de outros países, no Brasil são empregadas correntemente duas palavras para indicar as modernas inscrições nas paredes. Distinta de graffiti, termo com o qual se reconhece a estas manifestações uma intenção estética e de diálogo com suporte e transeuntes, pichação tem uma conotação pejorativa e remete às inscrições realizadas com piche. No senso comum, este ato está ligado a um processo anárquico, onde o que importa é transgredir, provocar e agredir o patrimônio alheio chamando a atenção sobre si. Ao mesmo tempo, as inscrições apontam para os limites e contrastes da sociedade moderna e do modelo econômico adotado por ela: os ícones promovidos pela mídia comercial convidam para um mundo fictício, um éden inatingível, criando deliberadamente para promover a marca e o nome de “alguém”. Justamente à perversidade deste modelo deve ser imputada a responsabilidade das inscrições terem adquirido, na modernidade, o caráter de um fenômeno de massa, quase de uma moda.

Às declarações e manifestações de protesto que acompanham os muros desde a invenção da escrita se sobrepõem, hoje, apelidos realizados com uma caligrafia inusitada, por meio de spray, rolinho e tinta. Ao lado dos tag aparecem mensagens esporádicas como: “fui eu”, “somos sinistros”, “só de fuga”, e outras frases do tipo “tá pra surgir uma galera q pega mais broto”, “as outras tiram onda, a AR tira a praia inteira”, ou ainda “somos a triste opacidade dos nossos espectros futuros”. Provocatória, a produção de pichações coloca seus autores à margem da legalidade. A adrenalina é o principal “barato” do pichador e afeta o jovem justamente na idade em que aprendemos a conhecer os limites.

Se aflora na adolescência, a prática do rabisco começa evidentemente antes, na escola. Aprendemos a escrever por imitação, copiando as letras do professor traçadas com giz no quadro negro. Na carteira, no banheiro e no canto dos livros didáticos, a ação lúdica do rabisco cresce nas entrelinhas do programa didático, nos momento de distração.

Uma vez alcançada a rua, as inscrições se tornam um ato de “apropriação visual”: ao marcar seus itinerários pela cidade o pichador passa a interagir com o universo simbólico urbano.

Sozinhos ou em grupo, os jovens pichadores atuam geralmente durante a noite, seguindo regras e critérios próprios. Na disputa pelo “ibope”, que garante a notoriedade do pichador, o que vale é a ousadia, a localização e a quantidade de escritas. Pichar em locais de grande circulação, de difícil acesso ou próximos a um posto de polícia, por exemplo, contribui para consagrar o autor.

A realização de alguns “ataques” comporta estudo do local, planejamento da incursão, escolha do material, além de habilidade e coragem. Estas características determinam o sucesso do pichador em seu meio: o mais ousado passa a ser reconhecido e respeitado. Nas festas vira fatalmente alvo do interesse das mulheres.

O grau de notoriedade do pichador influencia sua posição no ranking das galeras. Essa hierarquia muitas vezes é explícita na pichação com a colocação de números (01, 02 etc.). Organizados inclusive com carteirinhas, os principais pichadores de diferentes galeras chegam a se juntar em ulteriores grupos, como os Pichadores de Elite (PE), de Belo Horizonte, que nos anos 90 se encontravam no Central Shopping (centro).

Entre os pichadores mais ativos nesta época em BH estão Gambôa, Jiraia e Cossi do CK (Comando Killer), que ligaram seu nome ao fenômeno da “blindagem”(45): no bairro ou nas avenidas, a supremacia de uma galera passou a ser declarada com a demarcação ostensiva do território, “atravessando” (riscando por cima) as marcas dos outros grupos.

Na capital mineira, como em muitas outras cidades, a pichação acabou se tornando prática comum entre as torcidas organizadas dos grandes times de futebol. Nos anos 80, após a Máfia Azul pichar a sede do Atlético em Lourdes, o fenômeno generalizou-se. De fato, é nos grandes templos do futebol que a pichação adquire para o jovem o caráter dos grandes conflitos, e passa a integrar a coreografia mítica do ritual esportivo.

Para além da agressão e dos eventuais danos ao patrimônio provocados pelas inscrições, o que mais intriga o pesquisador desta “guerrilha visual” é o fato de os pichadores terem criado uma linguagem necessariamente criptográfica, empregando pseudônimos, grafias e códigos aparentemente enigmáticos, incompreensíveis para o cidadão comum.

Se perante a sociedade estas escritas permanecem anônimas, entre os jovens elas acabam por tornar-se uma segunda identidade. Como nas inscrições realizadas nos antigos rituais totêmicos, as pichações aludem justamente às relações que existem entre o pichador e o conjunto dos grupos que compartilham esta prática. Ao lado da tag, o pichador costuma colocar a sigla do grupo ao qual pertence (em alguns casos mais de um), sua posição no ranking da galera (01, 02 etc.) e, eventualmente, o nome do bairro ou da região onde mora. Outros dados, como a filiação a uma torcida organizada, completam a composição. O tempo de atuação do grupo, por exemplo “APB 7 anos”, também aparece de vez em quando. O nome de uma galera, aliás, pode ser perpetuado por mais de uma “geração” de pichadores.

A propriedade mágica atribuída às inscrições ainda no paleolítico é sentida ainda hoje pelos pichadores que chamam suas marcas de “presa”, gíria que indica justamente a assinatura nos muros, capaz de evocar a “presença” de seu autor. Nesse sentido, a iniciação a esta prática pode representar a superação de um desafio pelo qual o adolescente é reconhecido perante o seu e os outros grupos.

A escola, instituição que sempre relegou o desenho às margens dos programas educacionais e que hoje se queixa do escasso interesse dos alunos para a escrita e a leitura, pode reavaliar o potencial implícito nesta manifestação. Considerando que o interesse pelas inscrições, bem como pelo desenho, geralmente diminui com o fim da puberdade, a sociedade não deveria tratar a pichação simplesmente como um crime comum. A realização de desenhos e inscrições pode desempenhar um papel importante na formação da identidade do jovem, principalmente no que diz respeito à sua auto-estima e relação com o grupo.


Notas:

1. G. CUSATELLI (org), Dizionario Garzanti della Lingua Italiana, 1965.
2. N. ZINGARELLI, Lo Zingarelli dizionario della lingua italiana, 1996.
3. A. B. de H. FERREIRA, Novo Dicionário Aurélio, s.d.
4. T. SCAFF, Graffiti – II Semana Cultural da FUMEC, 1989, p.2, datilo.
5. C. FONSECA, A poesia do acaso, s.d., p.18 e ss.
6. O. C. F. MATOS, As Barricadas do desejo, 1989, p.20 e ss.
7. M. A. RIBEIRO, As Neovanguardas: Belo Horizonte – anos 60, 1984, p.36.
8. Ibidem, p.41 a 43.
9. Ibidem, p.42 a 47.
10. Ibidem, p.35.
11. M. do C. VENEROSO, Caligrafias e escrituras: diálogo e intertexto no processo escritural nas artes no século XX, 2000, p.208 e ss. datilo.
12. A. B. OLIVA, American Graffiti, 1998, p.109-110.
13. M. do C. VENEROSO, op. cit., p.242.
14. Ibidem, p. 245.
15. LEE, History, Part 1 – Ground Work 1966-71, 1998-2003,
16. J. de DIEGO, La estética del graffiti en la sociodinámica del espacio urbano, 1997, cap. 14.1. datilo.
17. Aerosol spray can, in:
18. J. de DIEGO, Op. Cit., 1997, cap. 14.2.
19. Ibidem, cap. 5.
20. LEE, History Part 1 – Pioneering 1971-74,
21. Ibidem, Style Revival, 1978-1981.
22. J. de DIEGO, Op. Cit., 1977, cap. 14.3.
23. LEE, Henry Chalfant-Photograper/Filmmaker,
24. I. BENTES e M. HERSCHMAN, Geração hip hop, Folha de São Paulo, Caderno Mais, Domingo, 18 de agosto de 2002, p.9.
25. E. MARTINEZ, Mundo negro http://www.mundonegro.com.br 02 de maio de 2003.
26. A. B. OLIVA, American graffiti, 1998, p.111 e 112.
27. E. N. ANDRADE, Rap e educação, 1999, p.86.
28. J. DAYRELL, A música entra em cena: o Rap e o funk na socialização da juventude em Belo Horizonte, 2001, p.39 a 40.
29. M. ALEXANDRE, Muito além do Hip Hop, 2003, p.41.
30. E. N. ANDRADE, op. Cit., 1999, p.87.
31. C. M. A. RAMOS, Grafite, pichação & cia., 1994, nota a p.19.
32. D. A. R. FILHO, 68 a paixão de uma utopia, p.19.
33. C. M. A. RAMOS, op. cit., p.91 e ss.
34. S. R. da SILVA, Stencil Art na contemporaneidade: uma homenagem a Alex Vallauri, texto para a exposição na UNICID, 2001, datilo.
35. M. O. de M. VASSÃO e M. A. do N. PONTES, Alex Vallauri: trajetória passo a passo,
36. C. M. A. RAMOS, op. cit., p.11 e ss.
37. C. GITAHY, O que é graffiti, 1999.
38. E. N. de ANDRADE, op. cit., 1999, p.88.
39. P. BAGNARIOL, Entrevista com Dentinho e Ângelo, Belo Horizonte, 2004, datilo.
40. Beat Street, dir. Stan Lathan, EUA, 1981.
41. P. BAGNARIOL, op. Cit., 2004, datilo, p.4.
42. Ibidem, p.6.
43. M. I. LODI, A escrita das ruas e o poder público no Projeto Guernica de Belo Horizonte, 2003, p.141.
44. P. BAGNARIOL, Entrevista com Ba, JC e Peninha, Belo Horizonte, 2003, p.19, datilo.
45. Ibiden, p.18.


Referência:

VIANA, Maria Luiza e BAGNARIOL, Piero. História recente do graffiti, in BAGNARIOL, Piero e outros. Guia ilustrado de Grafitti e Quadrinhos. Belo Horizonte: 2004, p.155-185.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Superoito e movimentos sociais

A produção cinematográfica superoitista em João Pessoa (de 1979 a 1984) e a influência do contexto social/econômico/político e cultural em sua temática

Bertrand Lira


I. Introdução

O cinema paraibano teve uma grande projeção nacional na década de 60, quando Aruanda de Linduarte Noronha foi considerado o deflagrador do Cinema Novo. Outros filmes como No país de São Saruê, de Wladimir Carvalho e Padre Zé estende a mão, de Jurandy Moura, realizados entre o final dos anos 60 e início dos anos 70, tiveram também uma boa repercussão. Sobre esse cinema o crítico Wills Leal escreveu Cinema e província e não faltaram análises em publicações especializadas (a revista Filme Cultura, por exemplo) e citações em diversos livros publicados no Sul do país.

Até os primeiros anos da década de 70, a produção de filmes em 16mm era razoavelmente considerável. É quando surgem, em 1973, as primeiras películas em super-8, na época ainda chamada de mini-bitola. O oito milímetros ainda não tinha banda magnética para registro do som em sincronia com a imagem, o que só se concretizou com o advento do super-8.

No segundo capítulo desta pesquisa há um breve histórico dos primeiros filmes realizados na Paraíba e do movimento cinematográfico(1) da década de 60. Não se trata de uma análise desses filmes, mas de um panorama do que foi realizado em termos de cinema e a importância que teve no contexto cultural do nosso Estado e no resto do país.

Em seguida, no terceiro capítulo, o tema é exclusivamente o cinema em super-8, desde o seu surgimento no Brasil em 1970 – quando foram exibidas as produções pioneiras nesta bitola durante o I Festival Nacional dos Primeiros Filmes – até a sua chegada na Paraíba, em 1973. Ainda neste capítulo, há um breve histórico do que o autor chama de Primeira fase do cinema super-8 que corresponde aos filmes produzidos a partir do seu surgimento (1973) até 1976. Da Segunda fase (1979 a 1983) há uma análise do movimento cinematográfico surgido nesse período, detendo-se com maior profundidade nos filmes oriundos dos três estágios em Cinema Direto, realizados pelo Núcleo de Documentação Cinematográfica (Nudoc), por se tratar de uma significativa produção, tanto pela qualidade de alguns filmes, como também por representar, em termos de quantidade, a maior parte das películas realizadas nesta fase.


Revisão de literatura

A literatura sobre o cinema superoitista não é um problema exclusivo da Paraíba, ela é escassa também em termos de Brasil. O que se tem publicado sobre o super-8 resume-se a manuais de instruções técnicas para o manuseio de equipamentos. O único livro que menciona o assunto no nosso Estado é Cinema e revisionismo, do crítico Alex Santos, mesmo assim em apenas três páginas, onde ele lista os filmes paraibanos realizados nesta bitola. Há todavia enganos, como por exemplo, mencionar Trabalhadores do Icó de Bertrand Lira e Torquato Joel, quando na realidade o filme chama-se Emergência e é somente de Torquato.

A Oficina do Curso de Comunicação (OC) Social chegou a publicar artigos e entrevistas sobre o cinema superoitista nos seus Cadernos de Comunicação e Realidade Brasileira. No número zero há um artigo de João de Lima: Gadanho – o que os estudantes escreveram, publicado em agosto de 1980. E, no número 1, há uma enquête com Jomard Muniz, Linduarte Noronha e Wills Leal, com o título Cinema Paraibano – Entrevista.

Sobre o Cinema Direto tem uma entrevista com o professor Pedro Santos – na época coordenador do Nudoc – noutra publicação da OC – Plano Geral, – uma coletânea de textos escritos pelos alunos de Crítica Cinematográfica do Curso de Comunicação Social da UFPB no primeiro semestre de 1981. A maior parte do material utilizado nesta pesquisa consiste em apostilas elaboradas pelo Centro de Formação em Cinema Direto para os seus estágios, entrevistas com os próprios realizadores, cuja contribuição foi bastante significante, e artigos de jornais.


II. História do cinema paraibano (as primeiras produções)

Foi por volta de 1918 que surgiram as primeiras realizações cinematográficas na Paraíba, com o fotógrafo oficial do governo, Pedro Tavares, registrando os acontecimentos mais importantes da cidade. Nessa mesma época, o exibidor Walfredo Rodrigues – que também incursionara pelo teatro, fotografia, literatura, arquitetura e urbanismo – se dedicava ao cinema, montando um laboratório onde revelava e copiava seus inúmeros filmes sobre coisas típicas, especialmente trabalhos ligados à agricultura. Sua produção era essencialmente documental e jornalística.

De 1917 a 1931 ele realizou nove edições de um Cine-Jornal que chamou de Filme Jornal do Brasil e eram apresentados na sua própria sala de exibição. Em 1923, ele documentou o Carnaval paraibano e pernambucano, um filme com esse nome e oitenta minutos de duração. Cinco anos mais tarde, em 1928, Rodrigues realizou Sob o céu nordestino (80 minutos), um documentário constituído de oito partes, sendo a primeira uma ficção sobre a presença indígena na Paraíba, do qual fora fotógrafo e produtor. Seu último filme Reminiscência de 30, realizado em 1931, sobre João Pessoa, registrava seus discursos, viagens pelo interior e o seu enterro(2).

Um anúncio do filme, impresso provavelmente quando de sua exibição em Cajazeiras em 1928, dizia o seguinte:

Sob o céu nordestino – Cinema Moderno
Hoje às 7 ½ horas em ponto
Filme natural de costumes
Um pouco da vida da “Fornalha ardente” – A fauna marinha – A pesca da baleia – O praieiro e sua irmã a jangada de vela – O Sertão – A flora sertaneja – O vaqueiro – O camboeiro – As pequenas manufaturas – O Brejo – A Capital – Monumentos – A arte e a natureza.
Com este filme a Nordeste (grifo do autor) desfaz o errôneo julgamento de quem não conhece a Parahyba, esta rica região do Nordeste Brasileiro.
Todo cajazeirense deve assistir a esse filme apanhado nos sertões parahybanos e que os jornais da capital têm tecido bastante elogios.

Este anúncio foi exposto durante a Semana Cultural Walfredo Rodriguez, realizada de 20 a 24 de agosto de 1984, na Fundação Casa de José Américo, em João Pessoa.

O cineasta Alex Viany deu o seguinte depoimento a Manfredo Caldas, depois da exibição de seu filme Cinema paraibano – Vinte anos depois: “... eu quero anotar logo de saída, uma coisa que me parece muito especial: o documentário do pioneiro Walfredo Rodriguez, Sob o céu nordestino, era uma novidade na época porque além de documentário, tinha um prólogo de ficção. (...) Walfredo Rodriguez está no princípio de tudo porque numa das primeiras exibições ele se impressionou com aquilo e começou a querer aprender”.


Cinema paraibano na década de 60

A criação do Cinema Educativo da Paraíba (CEP) em dezembro de 1955 pelo governador José Américo de Almeida foi um fato de bastante significação para o cinema paraibano. O CEP era um órgão subordinado ao Serviço Social do Estado e tinha como atividade principal prestar assistência à rede oficial de ensino, através da exibição de filmes, além de registrar os acontecimentos importantes na área governamental.

Até o início da década de 60, o CEP, no plano de realizações não fazia outra coisa a não ser documentar, sob a ótica dos próprios patrocinadores, as inaugurações de obras públicas no Estado, visitas e festas oficiais. No governo de Pedro Gondim, o CEP sofre uma ampliação em sua estrutura e estende as suas atividades, auxiliando as primeiras realizações do documentarista paraibano Wladimir Carvalho e incentivando o movimento cineclubista em João Pessoa. Desde a sua criação, o fotógrafo de cinema João Córdula dirige essa instituição que ele próprio ajudara a formar. Uns quatro anos antes, em 1951, ele havia andado pelo interior filmando a distribuição de gêneros alimentícios pelo interior do Estado, durante um período de longa estiagem.

É também nessa década que o cinema paraibano se projeta nacionalmente com Aruanda, documentário de 10 minutos, em 35mm, originado de uma pesquisa feita por Linduarte Noronha em 1958 sobre uma festa folclórica dos negros sertanejos de Santa Luzia. Lá o cineasta que até então não tinha incursionado pela realização de filmes, tomava conhecimento da existência de um aglomerado de antigos quilombados africanos, com economia própria de subsistência. Com o equipamento do INCE (Instituto Nacional de Cinema Educativo) e produzido pelo Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, Linduarte realiza em fevereiro de 1960 o filme que foi considerado o deflagrador do Cinema Novo. Uma questão que gera conflitos de opinião é a de que Linduarte não tinha consciência da importância que Aruanda teria para o documentário brasileiro. O próprio cineasta, hoje professor de Jornalismo Cinematográfico do Curso de Comunicação Social da UFPB, considera sem fundamento tal dúvida(3).

Linduarte, autodidata, emergiu de uma geração cineclubista da década de 40, junto com Wills Leal, João Ramiro Melo, Wladimir de Carvalho e José Rafael de Menezes. Suas atividades no cineclube consistiam em projeções no cinema de Fernando Honorato sempre seguidas de debates. Havia também a publicação de uma revista especializada, A Filmagem, sob a responsabilidade do romancista Virgínius da Gama e Melo, J. R. Melo, L. Noronha e Geraldo Carvalho.

Dois anos depois, Linduarte realiza seu segundo filme, Cajueiro nordestino, um documentário em 35mm, também produzido pelo INCE e Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, mas sem a vitalidade e o impacto que causou o seu filme anterior Aruanda.

Da geração cineclubista da década de 50 – que se juntou mais tarde a outros amadores de cinema na Associação dos Críticos Cinematográficos da Paraíba, a extinta ACCP – emergiu a produção cinematográfica mais significativa dos anos 60. Wladimir Carvalho e João Ramiro Melo realizaram Os romeiros da Guia (1962), um documentário em 35mm que eles próprios produziram. Em seguida, W. Carvalho, numa produção independente dirige A bolandeira e emigra para o Sudeste do país, onde permanece trabalhando nos jornais do Rio de Janeiro até o final de 1967. Ao voltar à Paraíba, filma a sua obra mais importante: O Rio do Peixe – que posteriormente se transformou no tão discutido O País de São Saruê.

A primeira versão do filme ficou pronta em 1968, ainda com o primeiro título e só em 1971 é que foi exibido a um pequeno público e escolhido para o Festival de Cinema de Brasília, mas São Saruê foi censurado sob a alegação de “ferir a dignidade e os interesses nacionais”. Talvez este filme não conseguisse tanta notoriedade se não tivesse sido detido pela censura federal. Mas isto, de modo algum, diminui a importância que esse documentário teve e continua tendo, ao registrar cinematograficamente as contradições sócio-econômicas de um sistema fundiário, sistema que eterniza privilégios para uma minoria de latifundiários e uma situação de miséria para uma grande parcela da população do Sertão nordestino.

Da primeira geração de cineclubes, surgiram algumas tentativas de realização em 1967, mas que entraram no rol dos filmes inacabados, como o crítico e cineasta Alex Santos classificou em seu livro Cinema e revisionismo: Curral do Peixe, de João Córdula, Libertação, de Carlos Aranha, Uma aventura capitalista, de Antônio Barreto Neto e Arribação, do próprio Alex Santos.

Em 1965, a Paraíba Produções Cinematográficas, do empresário Marcus Odilon R. Coutinho traz Walter Lima Júnior e realiza, em co-produção com Glauber Rocha, o longa-metragem baseado no livro homônimo de José Lins do Rego O Menino de Engenho.

“Uma outra geração emerge a partir de um curso de cinema ministrado no Rio de Janeiro em 63 por Arne Sucksdorff”(4), do qual participaram Paulo Melo (Contraponto sem música, curta-metragem em 16mm com 10 minutos, produzido por Virgínius da Gama e Melo, 1966) e Ipojuca Pontes (Homens do caranguejo, documentário em 35mm realizado em 1963). A maioria desses cineastas permaneceu na Paraíba na década seguinte, e alguns deles realizaram outros filmes. Em 1970, Linduarte Noronha dirige o seu primeiro longa-metragem e seu último filme, O salário da morte, baseado no romance de Zé Bezerra, com roteiro de W. J. Solha. Ipojuca Pontes realiza um documentário em 35mm, A poética popular (1970) e Wladimir Carvalho Incelência para um trem de ferro, emigrando ambos para o Sudeste do país, onde fixaram residência.

Em termos de quantidade de filmes produzidos, a década de 70 foi mais profícua do que a anterior, isto é, mais filmes foram realizados nas bitolas 16 e 35mm. No entanto esta pesquisa não se propõe a discutir essas produções, nem mesmo tecer um breve comentário ou um relato histórico como foi feito em relação à década de 60. O tema deste trabalho é o cinema em super-8 num determinado período que abrange os últimos anos de 70 e os primeiros anos 80.


III. O cinema superoitista, surgimento no Brasil

A década de 70 foi marcada pelo recrudescimento do autoritarismo exercido pelo regime militar instaurado no país desde 1964. A ausência total de liberdade de expressão – pois o direito à exploração dos canais de televisão e emissoras de rádio era concedido pelo Estado – foi a tônica desse período. Para exercer um rígido controle sobre os meio de comunicação de massa, o Estado utilizava mecanismos como a censura, através da Lei de Imprensa e a Lei de Segurança Nacional, como também a concessão de direitos para a utilização efetiva desses meios.

Foi nesse contexto político que se realizou em São Paulo (1970) o I Festival Nacional de Primeiros Filmes. Durante este evento, foram exibidas ao público as primeiras películas em super-8 com uma preocupação do fazer cinematográfico, evidenciada principalmente pela sua linguagem. Depois desse festival outros aconteceram, não só em São Paulo, mas também noutros Estados, resultando na formação de associações, cineclubes e cooperativas voltadas para a realização e discussão dos filmes nessa bitola. Os realizadores, através dessas organizações, iniciaram uma luta pelo reconhecimento do super-8 enquanto cinema e pela sua defesa do ataque por parte dos cineastas de outras bitolas e da má vontade de alguns órgãos do governo.

Em duas ocasiões, os cineastas brasileiros, amadores e profissionais, foram prejudicados pela política econômica do governo, quando tiveram de enfrentar uma grande elevação de preços das películas virgens e de equipamentos. A Cacex – órgão oficial responsável pelo comércio exterior – decretou um grande aumento na taxa de importação de filmadoras, editores, projetores e demais acessórios de filmagens, taxando-os de supérfluos.


Primeira fase

Essa fase do cinema superoitista em João Pessoa se inicia em 1973 com as primeiras realizações nesta bitola. É importante salientar que o chamado super-8, provido de banda magnética para registro do som simultaneamente com a imagem, só surgiu poucos anos depois. Até então se utilizava o oito milímetros com muito menos recursos. Neste ano, Paulo Melo, que em 1966 realizara Contraponto sem música (documentário em 16mm) filma nessa bitola A última chance. Ainda em 1973, outra película em oito milímetros é realizada por outro veterano: trata-se de O estranho caso de Leila, de Antônio Barreto Neto. Ele é o autor de Uma aventura capitalista, em 16mm e que engrossa o rol dos filmes inacabados, denominação dada por Alex Santos às películas que não chegaram a ser montadas e sonorizadas, mesmo tendo todas as suas seqüências concluídas(5).

Entre 1975 e 1976, surgem novas produções de veteranos do cinema paraibano e também de novos cineastas. Do primeiro grupo temos A guerra secreta de Antônio Barreto Neto em co-autoria com Sílvio Osias, Yoham, Absurdamente e Lampiaço de José Bezerra, A greve de W. J. Solha, que também é co-autor em Absurdamente e O coqueiro de Alex Santos, que mais tarde realizaria mais sete filmes nessa bitola. Outro profissional do cinema que, em 1970 dirigira o curta-metragem em 16mm Padre Zé estende a mão realiza em super-8 outro documentário: A festa de Iemanjá. “Um filme sobre o problema da incomunicabilidade humana ambientado nos diversos setores sociais”, é como um artigo do jornal A União (outubro de 1975) define O desencontro, o primeiro da trilogia por Archidy Picado. As duas outras películas em super-8, O garoto e Elegia para um homem só, que ele roteirizou e dirigiu, versam sobre o mesmo tema, a solidão.

Vale salientar que estas informações foram obtidas através de jornais e outras publicações, como também através de alguns poucos realizadores que se dispuseram a cooperar. As barreiras criadas por muitos deles em exibir suas antigas produções impossibilitaram o autor de vê-las. Por outro lado, esta pesquisa não se propõe a fazer uma análise crítica dessa produção, quase que totalmente desconhecida para o autor. Essas realizações chegaram ao nosso conhecimento somente através de literatura especializada. A nova geração de superoitistas praticamente nunca assistiu a um desses filmes. Talvez o problema da pouca divulgação dessas obras nesta década deva-se unicamente à recusa dos realizadores em exibi-los, já que oportunidades (as quatro Mostras de Cinema realizadas em João Pessoa) não faltaram.

O que se percebe é uma certa rejeição por parte dos cineastas às suas primeiras obras, talvez por vê-las mais criticamente anos depois do que na época em que foram realizadas. Alguns filmes foram exibidos na Primeira Mostra Paraibana do Cinema Amador Super-8, “uma promoção de críticos e cineastas amadores de João Pessoa, em reconhecimento aos 20 anos do Cinema Educativo da Paraíba e ao seu diretor João Córdula”(6).

É importante salientar que o CEP, com o advento dessa bitola na década de 70, passou a acompanhar de perto a produção superoitista da capital, prestando assistência técnica aos que experimentavam com essa mini-bitola, como era chamada na época.


Segunda fase (1979 a 1983)

A partir de 1979, inicia-se, no Brasil, um processo de abertura política com a revogação do Ato Institucional nº 5 (AI-5) que outorgava ao Presidente da República o poder de interferir nas mais diversas esferas da sociedade brasileira, com a concessão da anistia aos presos e exilados políticos e o fim da censura prévia à imprensa, vigorada durante os anos mais repressivos da ditadura militar que se instalou no país em março de 1964.

É nesse contexto de relativa liberdade política que Pedro Nunes e João de Lima, estudantes do Curso de Comunicação Social da UFPB, iniciam as filmagens de Gadanho, uma película em super-8 com cerca de 24 minutos de duração. Esse documentário sobre a atividade dos catadores de lixo do Baixo Roger surgiu, segundo relata J. de Lima, no Caderno de Comunicação e Realidade Brasileira, “a partir do momento em que lemos a reportagem publicada no Berro e em que constatamos no Vazadouro um problema social que precisava ser denunciado”(7).

Embora o Curso de Comunicação apresentasse disciplinas específicas de cinema, Gadanho foi a sua primeira oportunidade de realização na área de cinema, iniciada em janeiro daquele ano e concluída seis meses depois, contando com a ajuda de algumas pessoas interessadas no projeto. Esse filme foi para o cinema superoitista, no final da década de 70 e início de 80, o que Aruanda representou para o cinema paraibano na década de 60. Não se quer aqui comparar os dois filmes em termos de estética ou linguagem cinematográfica, mas o que cada um representou para o movimento cinematográfico da Paraíba quando foram realizados. Talvez a comparação pareça absurda pela importância e repercussão que Aruanda teve para o cinema documental brasileiro. O que se quer deixar bem patente aqui é a relevância que esse curta-metragem teve para o cinema superoitista. A partir dele, o cinema paraibano em super-8, já que a produção nas bitolas profissionais (16 e 35mm) se deu em pequeno número nesse período, ressurge em forma de movimento (sobre o conceito de movimento, ver nota 1).

Esta constatação foi feita a partir de depoimentos dos próprios superoitistas: Henrique Magalhães, autor de cinco filmes, incluindo um na linha documental do Cinema Direto, afirma: “Um dado importante foi a realização de Gadanho, pois a partir dele se rompeu com a estagnação do cinema na Paraíba. A gente só tinha conhecimento do que foi produzido durante o movimento do Cinema Novo. Havia uma produção em super-8, mas não era sistemática e alcançava um número muito mais limitado de pessoas. A partir de Gadanho houve uma retomada do cinema na Paraíba porque se alcançou um público maior e muita gente se interessou em fazer super-8”. Torquato Lima, co-autor de Imagens do declínio ou beba coca, babe cola com Bertrand Lira, também reconhece o impulso que o filme de Pedro Nunes e João de Lima deu ao cinema paraibano, inclusive com influência decisiva para que eles realizassem essa película sobre a invasão das multinacionais no Brasil.

Lauro Nascimento – autor de três filmes que contrapõem o profano e o sagrado – também ingressou na realização cinematográfica quando assistiu a Gadanho. Ele e Jomard Muniz de Brito são os únicos realizadores dessa fase que produziram todos os seus filmes com recursos próprios. Jomard é autor de inúmeros filmes, mas apenas três interessam a esta pesquisa porque foram realizados aqui e apresentam uma temática paraibana. Trata-se de uma trilogia: o primeiro, Esperando João (30 minutos, realizado em outubro de 1981), é um filme sobre João Pessoa, a cidade e Anaíde Beiriz, poetiza e amante de João Dantas, assassino de João Pessoa. Ela é a personagem central do filme e é apresentada em seis versões, duas delas vividas por travestis. O segundo, Cidade dos homens, é mais uma sátira do cineasta em cima de valores arcaicos e da presença forte do macho na cultura paraibana. E o último, Paraíba Masculina Feminina Neutra, é sem dúvidas o mais criativo e satírico filme desse cineasta que vive em constante atividade experimental no cinema. É com Paraíba M.F.M. que Jomard demonstra maior intimidade com a linguagem cinematográfica.

Sobre esse filme, Pedro Nunes escreveu: “... Desta vez não é uma aula ou um seminário com o prof. Luís Custódio da Silva, ou ainda as confidências em mesas de bar; é mais uma produção em super-8 que se soma a outras para desbravar novos espaços na província. O filme é Paraíba Masculina Feminina Neutra – de dosagem libertária e três tempos (presente/passado/futuro) reunidos no hoje, fazendo um movimentado percurso por favelas (Ilha do Bispo...) até o(s) palácio(s) da Redenção e Justiça. São doze personagens; palhaço Xuxu, professor Libertário, professora Libertina (marxicóloga da USP), Corisco/Lampião, Maria Bonita, Chicoteador, Anaíde Beiriz 1, Anaíde 2, Cantor, Ana e Bárbara e atônitos expectadores; todos pessoenses/Paraibanos/Nordestinos/Universais compõem o quadro visual, poético e ambulante construído por Jomard. Atores que representam, se inserem e transpõem a realidade de fatos que estão escondidos, porém agora colocados à tona para uma reflexão em ritmo de ruptura”(8).

É também nesse contexto de abertura que surgem grupos de militância sexual, racial e partidária, entre outros, que antes, devido à conjuntura política, permaneciam sem se manifestarem. Em João Pessoa, é criado o Nós Também, um grupo de militantes homossexuais que tinha uma proposta original, a de militar através da arte. Este grupo atuou, por quase três anos, publicando boletins, envelopes de arte (envelopes que continham fotos, poesias, arte-xerox etc), pichando muros, fixando outdoors e até com a produção e realização de um filme: Baltazar da Lomba.

Baseado num texto extraído do livro La Visitação – Denunciações de Pernambuco, o filme narra fatos ocorridos na Paraíba durante os dez primeiros anos da colonização portuguesa. Baltazar (o personagem), segundo os autos do Santo Ofício, era “um homem de aproximadamente cinqüenta anos, solteiro, de costumes femininos, que mantinha relações sexuais com os índios paraibanos”. O filme documenta as denúncias feitas contra Baltazar à inquisição portuguesa e vai mais além, ao levantar a discussão da ingerência do Estado na liberdade individual e a questão da formação da moralidade brasileira. Baltazar da Lomba, realizado no primeiro semestre de 1982, foi fruto de longas discussões entre os componentes do grupo, responsável pela sua produção, direção e realização, resultando num filme bem acabado.

A discussão da sexualidade no cinema paraibano – que até então era assexuado – começa com Esperando João (de Jomard Muniz) em 1981 e passa por Perequeté (Bertand Lira) no mesmo ano, mas só vai atingir uma abordagem mais ampla com Closes de Pedro Nunes. Talvez não seja o filme em super-8 mais visto na Paraíba, mas com certeza o mais discutido. O misto de documentário e ficção desse cineasta não traz nada de novo em termos de linguagem cinematográfica, mas contribuiu, inquestionavelmente, para uma ampla discussão da homossexualidade e, ao mesmo tempo, tornar o super-8 um cinema respeitado para os que, até então, duvidavam de sua seriedade. Closes, na sua parte ficcional, trata do relacionamento amoroso de dois rapazes que, ao optarem pela homossexualidade são severamente reprimidos. Um deles não suportando a pressão social deixa a cidade. A abordagem documental apresenta depoimentos de habitantes da cidade, transeuntes (homossexuais ou não, militantes de grupo feminista e homossexual etc). Pedrinho contrapõe esses discursos, uns preconceituosos e intolerantes, outros ingênuos, alguns politizados como o da feminista e do militante guei, e denuncia todo o preconceito social em relação às pessoas que optam pela livre sexualidade.

A esse cinema que discutia a questão da sexualidade deu-se o rótulo de cinema guei que, por falta de uma denominação melhor, ficou sendo utilizado. Deste cinema, fruto de um período histórico menos totalitário, surgiram filmes como: Acalanto Bestiale, Miserere Nobis e Segunda Estação de uma Via Dolorosa, de Lauro Nascimento. Em todos os três filmes, predomina uma preocupação na sua plasticidade (luz, tipos de planos e movimentos de câmeras), originada da larga experiência do cineasta em cenografia teatral. Outro filme que traz essa temática é Era vermelho seu batom, de Henrique Magalhães, uma ficção rodada em Baía da Traição, baseado na maneira do cineasta ver a homossexualidade e o próprio Henrique considera Era vermelho... um filme autobiográfico. É uma obra que trata da fragilidade das relações humanas e da falta de companheirismo e da solidão que ela provoca.

A temática homossexual no cinema paraibano merece análise mais profunda – a que esta pesquisa não se propõe desta vez – e ficam dados os primeiros passos para uma posterior continuidade do assunto por algum estudioso do nosso cinema. Trata-se de um cinema controvertido e de inegável importância pelo contexto político e social em que surgiu.


O Cinema Direto na Paraíba

Um evento de grande importância para o cinema paraibano foi a realização da VIII Jornada Brasileira de Curta-Metragem, em setembro de 1979. Na organização deste acontecimento participaram a Universidade Federal da Paraíba através da Pró-Reitoria para Assuntos Comunitários, o Ministério da Educação e Cultura, Funarte, Embrafilme, o Itamarati e o Governo do Estado da Paraíba. Pelo número de entidades envolvidas percebe-se a relevância desta Jornada – que naquele ano deslocou-se de Salvador onde anualmente se realizava.

Durante este evento, um grupo de cineastas paraibanos reunidos promoveu um encontro entre o reitor da UFPB, Lynaldo Cavalcanti, o governador do Estado, Tarcísio Burity e o Diretor Geral da Embrafilme, a fim de reivindicarem um apoio ao movimento cinematográfico da Paraíba que nos anos 60 deu expressiva contribuição para a afirmação cultural do cinema brasileiro.

Uma das providências da UFPB foi a criação do Núcleo de Documentação Cinematográfica (Nudoc) e a aquisição de equipamentos de produção audiovisual (câmeras, projetores, editores, gravadores). Parte desse material veio do Centro de Formação em Cinema Direto de Paris, depois do acordo feito per esta escola e o diretor do Comitê do Filme Etnográfico Jean-Rouch e do cineasta Jacques D’Arthuys, durante a Jornada, para a criação de um atelier de Cinema Direto na UFPB.

Após o regresso dos professores Pedro Santos e Jurandy Moura de Paris, onde fizeram um estágio no atelier de lá, inicia-se a elaboração do projeto para o primeiro estágio de treinamento de mão de obra cinematográfica em João Pessoa, o que só se concretiza em março de 1982. Este primeiro treinamento teve aproximadamente quatro meses de duração e consistia em uma introdução teórica, quando se assistia e discutia filmes, na sua maioria documentários e vários deles produzidos durante estágios semelhantes em Paris. No restante do curso, era dada ênfase à prática de realização: nos primeiros quinze dias de aulas o aluno era estimulado a realizar um pequeno exercício de câmera sobre uma ação qualquer (uma pessoa que entra numa cantina e bebe um café, por exemplo). Aproximadamente um mês depois, fazia-se o segundo exercício, esse com o tema escolhido pelo próprio aluno que deveria colocá-lo em discussão antes de filmá-lo. Para isto eram fornecidos dois cassetes (cartuchos) em super-8 com 3 minutos de duração e o equipamento necessário. O terceiro exercício ou filme final não tinha, teoricamente, limite em relação aos cartuchos utilizados e cada estagiário poderia, portanto, utilizar quantos fossem indispensáveis. Mas a prática mostrou que quem não conseguia apresentar um filme acabado, utilizando cerca de 20 cartuchos, acabava desistindo de fazê-lo no decorrer do curso.

Alguns estagiários decidiam pelo tema durante a realização do segundo exercício, o que significava o aproveitamento desse material rodado no filme final. Foi o que aconteceu com Romão praqui, Romão pracolá (Vânia Perazzo) e Sagrada Família (Everaldo Vasconcelos). Dos vinte alunos matriculados, alguns desistiram de continuar o estágio em Cinema Direto ao verem os primeiros resultados do material filmado, e outros não chegaram a concluir o exercício final, mesmo tendo feito algumas tomadas.

Mas, afinal, o que vem a ser Cinema Direto? Antes de qualquer tentativa de discussão sobre esse tema, faz-se necessário deixar claro que esta pergunta nunca foi satisfatoriamente respondida durante os estágios realizados aqui. O que esta pesquisa pretende é expor algumas citações sobre essa “escola de cinema”, encontradas em alguns textos utilizados durante os treinamentos em João Pessoa e em Paris. O texto de Michel Marie(9) sobre o Cinema Direto diz o seguinte:

O conceito de cinema direto denomina, a princípio, uma nova técnica de registro da realidade pré-fílmica(10). Este termo – que substitui o vocábulo ambíguo cinema verdade, no início dos anos 60 – se aplica, além de uma simples técnica, a toda uma corrente que revolucionou os métodos de realização antes completamente estandardizada sobre o modelo industrial exclusivo. A esta técnica responde uma estética fundada numa volta à função primordial da palavra e no “contato direto e autêntico” com a realidade vivida. Esta estética é o produto de uma ideologia neonaturalista, dominante nos cinemas novos dos anos 60. As conseqüências técnicas, estéticas e ideológicas do cinema direto são assim mesmo consideráveis e se desenvolvem ainda.

Sobre a técnica do Cinema Direto, Michel Marie acrescenta:

... Sem técnica estrita, o cinema direto denomina o registro sincrônico da imagem e do som. Este som registrado no momento da filmagem não é como o som da produção industrial, um som testemunha, mas o som real do filme, e não será nem sonorizado artificialmente e nem pós-sincronizado em estúdio. Som e imagem são, portanto, captados simultaneamente e são restituídos tal qual na projeção. Mas o direto designa também e sobretudo a simultaneidade da filmagem e do fato representado. Ao contrário do cinema industrial(11), ficcional e de espetáculo, não há, no caso do cinema direto, anterioridade da ação a ser filmada. Esta não é, portanto, pré-estruturada ou representada, mas é o próprio ato de filmagem que cria o fato ou evento fílmico.

São questionáveis as afirmações de Michel Marie em relação à técnica do Cinema Direto. A experiência dos estágios realizados no Nudoc e na Associação Varan em Paris as contradiz. No que diz respeito ao uso do som direto, isto é, sincrônico com a captação das imagens, é a tônica de sua técnica. Mas é muito comum – e a maioria dos filmes saídos dos ateliês de Cinema Direto fazem uso – o som off (som não sincronizado, onde a pessoa que fala pode estar em cena ou não).

Quanto à afirmação de que no Cinema Direto a ação não é “pré-estruturada ou representada” não é, em parte, verdadeira. No filme As cegas (Antônia Maria), por exemplo, a diretora não precisou pedir às três deficientes que fossem à feira mendigar para que ela pudesse filmar, porque era o que elas faziam todos os dias. Já em Perequeté (de Bertrand Lira) foi preciso que Francisco Marto, personagem do filme, representasse uma cena de uma de suas peças e outra de um dos seus shows para serem filmadas, já que na época das filmagens ele não estava atuando em nenhum desses espetáculos.

Vejamos o que o Centro de Formação em Cinema Direto diz de sua pedagogia: “O Centro de Formação não ensina, mas limita-se a responder perguntas. Perguntas que estão colocadas inevitavelmente na ordem muito natural, indo do mais simples ao mais complexo, porque a formação consiste em incentivar, logo de início, o aprendiz para a realização do seu filme. O que ele tem vontade de realizar”(12).

Dos métodos do Centro assinala:

- Não se expressa através de imagens por obrigação ou porque está na onda. Faze-o quando tem vontade.
- O verdadeiro realizador é o cameraman, com a sua maneira própria de enquadrar.
- Quando se pretende traduzir a realidade, através de imagens, nunca se fica neutro, o conceito de documentário é uma impostura, uma pura ficção intelectual.
- O Cinema Direto situa-se diametralmente oposto à reportagem televisionada, e galopa o mais longe possível das escolas de cinema.
- O academismo é denunciado de início como terrível inimigo.
- Nosso propósito é, no mais breve espaço de tempo, dar a qualquer um meios de utilizar o cinema livre em sua própria atividade (profissão), nas melhores oportunidades possíveis.
- Aquele não será apenas o realizador, mas ao mesmo tempo, cameraman, operador de som e de montagem, divulgador de seu filme. Isto quer dizer artesão – cinegrafista e, por sua vez, formador.

A afirmação de que o “conceito de documentário é uma impostura, uma pura ficção intelectual” não condiz com os preceitos de uma “escola" (embora o Centro de Formação em Cinema Direto se negue enquanto escola) que considera o som captado sincronicamente com a imagem, “um som real do filme”, e que recusa a ação “representada ou pré-estruturada”. Além do mais, desestimula os seus aprendizes a realizar filmes de ficção. O conceito que o Cinema Direto tem do cinema documental é algo a se questionar.

Entre o que propõe o Centro de Formação e o que realmente acontece na prática há uma certa distância: no primeiro estágio realizado no Nudoc, dos vinte alunos que iniciaram o curso apenas seis concluíram seus exercícios finais (ou nove filmes finais). Vale salientar que as pessoas que realizaram seus filmes já tinham, de certo modo, algum conhecimento teórico ou prático sobre cinema. Cinco deles eram estudantes do Curso de Comunicação Social da UFPB.

Essas dificuldades de realização foram atribuídas principalmente ao manuseio de equipamentos que, embora sendo amadores (super-8), apresentavam um certo obstáculo para alguns alunos. Mas o problema crucial parecia, na verdade, ser a falta de familiaridade com a linguagem cinematográfica. Além disso, tinha o fator tempo: o estágio, que programado para 60 dias, fora prolongado por mais 60 por não alcançar seus objetivos no prazo anteriormente fixado. O mesmo aconteceu nos dois estágios que se realizaram posteriormente.

Era praticamente impossível fazer com que um aluno que nunca tivera contato com a realização aprendesse a manusear – com apenas algumas aulas de técnica cinematográfica – filmadoras, como também sonorizar e fazer a montagem de seu filme. E o que parece mais difícil, se familiarizar com a linguagem do cinema em tão curto espaço de tempo. No segundo e terceiro estágios, percebe-se que as dificuldades apresentadas foram muito maiores, não só pelos depoimentos dos estagiários, mas pelos produtos (filmes) apresentados que foram em número menor.

Outro ponto questionável era a proposta de “liberdade” do Cinema Direto na escolha do tema e na forma de abordá-lo. Não havia uma proibição expressa do que se queria filmar, mas estimulava-se os temas que mais interessavam às diretrizes do Cinema Direto. Além do mais, durante todo processo de realização, havia um direcionamento para se filmar dentro dos “padrões técnicos e estéticos” dessa escola.

Dentro desses preceitos técnicos e estéticos foi realizada toda produção em super-8 do Nudoc durante os três estágios de treinamento de mão-de-obra cinematográfica, entre 1981 e 1983. O produto desses estágios era de filmes voltados para uma abordagem sociológica do sujeito (tema), cuja tônica era a relação do homem com a família, com seu trabalho e a questão da sobrevivência. Enquadra-se nesta linha documental o filme Ciclo do Caranguejo, realizado por Elisa Cabral (no primeiro semestre de 1982), professora do Departamento de Sociologia da UFPB, que descreve o processo de comercialização do caranguejo desde a sua pesca em Livramento – cidade do litoral paraibano – até a sua comercialização em bares e restaurantes de João Pessoa.

Emergência, de Torquato Joel, trata-se de um documentário sobre a vida de camponeses que habitam na bacia do açude de Orós (interior do Ceará) na época da grande estiagem de 1981. Ele enfoca, através de uma família, o problema da emigração causado pelas secas naquela região e as frentes de trabalho criadas pelo governo. Surge ainda um personagem interessante que poderia ser tema de um outro filme pela riqueza de informações que ele nos dá. É um barbeiro que vive da troca de seu trabalho por mercadorias (objetos e alimentos).

Percebe-se, nesses filmes, uma preocupação com a condição do homem na sociedade, de denunciar a sua situação de oprimido. Na época em que foram realizadas, o país se encontrava em pleno processo de redemocratização de suas instituições políticas e sociais (o que continua nos dias de hoje). Toda essa geração havia tomado consciência, há pouco tempo, dos anos de obscurantismo político por que passara o Brasil nos últimos vinte anos. Esses temas eram constantemente discutidos pela imprensa e também nas salas de aulas dos cursos da área de humanas. Daí essa preocupação em analisar e refletir esses problemas que afetavam a sociedade brasileira.

A vida de um trabalhador da construção civil é o núcleo do filme Mestre de obras, de Newton Araújo Júnior, que atribui a escolha do tema a pessoas ditas “politizadas”. Logo na primeira cena, ouve-se a voz do cineasta perguntando o que “seu José”, o mestre de obras, gostaria que as pessoas soubessem dele. Daí o filme segue essa orientação, mostrando a sua família – morando numa casa inacabada –, e seu relacionamento com os amigos da construção civil. A música composta por Chico César para Mestre de obras foi bem utilizada.

Seguindo ainda uma temática sociológica temos Romão praqui, Romão pracolá, de Vânia Perazzo, professora de Botânica do Curso de Agronomia, em Areia. Atualmente ela faz doutorado em cinema na Universidade de Nanterre (Paris)(13). Romão é uma dessas pessoas que parece nunca ter tido contato com a civilização moderna ou parado no tempo: é de uma ingenuidade inacreditável. Vânia, em seu filme, flagra momentos interessantes da vida deste músico, que constrói seu próprio instrumento musical – uma espécie de berimbau de lata, madeira e arame, com o qual realiza seus “espetáculos” nas feiras das pequenas cidades do Brejo paraibano. Como a maioria dos estagiários, ela também não tinha nenhuma experiência em realização cinematográfica, mas era fotógrafa amadora e interessada em cinema.

Durante o segundo estágio, mais quatro filmes, além do Ciclo do caranguejo (Elisa Cabral), optaram pela abordagem de problemas sociais: O menor, Manipueira, Bernadete e Do oprimido ao encarcerado. O filme de João Galvíncio Júnior, O menor, põe em conflito o discurso dos marginais mirins e o discurso das autoridades governamentais sobre a polêmica questão do menor abandonado em João Pessoa. Manipueira, de Maria Aparecida (Cidinha), também aluna do Curso de Comunicação Social, descreve o processo de colheita da mandioca até a fabricação da farinha – de modo artesanal e com instrumentos rudimentares – que abastecerá o mercado das pequenas comunidades. Com Bernadete, Maria das Graças Sousa relata a luta de uma lavadeira de roupas para sustentar seus três filhos, frutos de dois casamentos desfeitos, e sua mãe; seus sonhos de viver em São Paulo “onde pagam melhor e assinam documentos”; seu único lazer, o forró.

A partir da leitura do livro da professora Maria Salete, uma dissertação de Mestrado sobre uma experiência realizada num presídio de João Pessoa, baseada na metodologia do educador Paulo Freire, Marcus Antonio Vilar realizou Do oprimido ao encarcerado, um filme que os próprios presidiários ajudaram a fazer, participando como iluminador ou técnico de som. Marcus diz: “Já não gosto mais deste filme. Vejo mil defeitos. Eu saía só para filmar, às vezes algum estagiário do curso me ajudava com o som, ou um presidiário segurava o microfone”.

Fugindo um pouco dessa temática, por abordar um lado mais psicológico de seus personagens ou por focalizar o trabalho artístico dessas pessoas, estão os seguintes filmes: Perequeté, de Bertrand Lira, radiografa a vida de um ator e dançarino que, demonstrando muita garra, tenta superar o preconceito contra o artista da província. Através de depoimentos de Francisco Marto, cujo apelido vem de uma peça infantil em que interpretou o coelho Perequeté, constata-se que o preconceito não é contra o artista em si, mas contra a livre opção sexual de cada indivíduo. “As pessoas acham que todo homem que faz dança é homossexual e que toda mulher é uma prostituta ou lésbica”, diz Perequeté em voz off numa das cenas em que aparece dançando.

Sagrada Família é a câmera violando a própria casa do realizador desta película (Everaldo Vasconcelos), descobrindo conflitos e revelando as neuroses de uma família de classe média baixa em João Pessoa. É um filme tenso e dramático que demonstra a grande intimidade do cineasta com a sua câmera e o objeto filmado. Tá na rua, de Henrique Magalhães, mostra, em 15 minutos, o trabalho de experimentação de um grupo amador em novos campos da dramatização. O autor teve sérios problemas em realizá-lo porque o grupo vindo do Sudeste do país estava participando de um encontro de teatro amador e Henrique teve de fazer todas as filmagens em apenas uma semana sem poder ver o resultado do que se filmava para estruturar melhor seu filme. As falhas técnicas não puderam ser contornadas e ele usou o material que tinha em mãos. Depois de Tá na rua, ele só realizou um documentário a mais, Les Etoiles, em parceria com Torquato Joel, durante estágio semelhante em Paris. Daí partiu para a ficção com Era vermelho seu batom(14).

Sonho de uma estrela é a vida de um artista de interior sem perspectiva de profissionalização e nem acesso aos produtores de discos. A frustração de não poder ser famosa a deixa profundamente descrente. É o filme final do autor de peças teatrais Eliézer Rolim. Pedro Osmar em carne e osso, de Otávio Cássio e Música sem preconceito, de Alberto Júnior são mais dois filmes que fogem à abordagem sociológica dos anteriores. O primeiro fala dos experimentos musicais e da vida do compositor Pedro Osmar e a sua atuação no grupo Jaguaribe Carne. O segundo trata do rock como forma de interação entre um grupo de jovens de classe média alta de Tambaú.

Durante o segundo estágio (primeiro semestre de 1982) e o terceiro (janeiro de 1983) quando foram realizados Ciclo do caranguejo, Sonho de uma estrela, O menor, Bernadete, Manipueira, Eleições (realização coletiva), Música sem preconceito, Fim de jornada (de Ana Lúcia Toledo), Pedro Osmar em carne e osso e Quando um bairro não se cala, o equipamento de filmagem (câmeras) já apresentava alguns problemas. Isso teve conseqüências desastrosas para alguns desses filmes, principalmente em relação ao som direto.


IV. Conclusão

Sempre que se discute o movimento cinematográfico paraibano da década de 60 e início de 70, inevitavelmente se compara essa produção com uma mais recente, a do cinema superoitista dos últimos cinco anos. O cinema paraibano, é necessário reconhecer, empobreceu seriamente. O que antes era filmado em 16 e 35mm, bitolas profissionais, passou a ser feito com o super-8, uma bitola amadora e com poucos recursos. Esse empobrecimento se deu em conseqüência da crise econômica que tem sofrido o país. O Brasil chegou aos anos 80 com uma das maiores dívidas externas do mundo e com uma política econômica que provocou uma perda cada vez maior do poder aquisitivo da população. A sua política cultural e educacional tem causado a maior crise que a Universidade brasileira já viveu.

Diante de toda essa conjuntura sócio-política e econômica, a produção cultural não poderia ficar impune, mormente o cinema. Porque este depende da aquisição de equipamentos – na sua maioria importados – e de películas virgens, só obtidas exclusivamente através da importação. A taxa sobre esta transação comercial é controlada pela Cacex – órgão responsável pelo comércio exterior. Tudo isso, aliado ao monopólio da indústria cinematográfica, isto é, os fabricantes de filmadoras, projetores, editores e demais acessórios de filmagens que encarecem seriamente a realização de um filme.

Não é de se esperar, portanto, que hoje toda essa geração de novos cineastas esteja com uma super-8 na mão, emprestada na maioria das vezes por órgãos oficiais ou instituições (a Universidade, por exemplo) e mendigando um ou dois cartuchos para realizar um curta ou curtíssima metragem. Dos filmes realizados, a maioria foi produzida pela UFPB ou através dela pelo Programa Bolsa-Arte da Pró-Reitoria para Assuntos Comunitários, Oficina de Comunicação do Curso de Comunicação Social ou do Núcleo de Documentação Cinematográfica – Nudoc, sendo este último o que mais contribuiu para o movimento cinematográfico dos últimos cinco anos.

O que esta pesquisa procurou fazer foi analisar duas tendências do cinema em super-8 de João Pessoa de 1979 a 1984, quando este surgiu em forma de movimento cinematográfico a partir da realização de Gadanho. A produção fílmica que introduziu a discussão da questão homossexual e da sexualidade em geral foi rotulada de cinema guei. Este cinema foi fruto de mudanças, principalmente políticas, na sociedade brasileira durante a chamada abertura política. Os grupos de minorias sexuais se organizaram decidindo colocar na pauta do dia discussões antes proibidas pelo regime totalitário. Em João Pessoa, um grupo de militância homossexual, o Nós Também – que tinha como membros alguns cineastas – utilizava a arte como forma de luta. Além dos filmes dos cineastas militantes, o grupo produziu e realizou conjuntamente um curta metragem.

Uma grande parte da produção superoitista dessa época veio do Nudoc, que realizou três estágios didáticos voltados para a formação de cineastas na linha documental do Cinema Direto. A proposta do Cinema Direto era de uma não-sofisticação da linguagem, colocando o cinema como instrumento e veículo de expressão para as pessoas que quisessem e pudessem fazer uso dele. Durante os três estágios, 25 filmes foram realizados pelos alunos, além de outros, cuja produção o Nudoc financiou.

Geralmente ao se analisar o cinema paraibano, o movimento superoitista é sempre tratado com um certo preconceito. É muito comum os críticos afirmarem que o “cinema super-8” significou um retrocesso na cinematografia paraibana. Quanto a isto, não há o que se discutir. É óbvio que deixar de trabalhar em bitolas profissionais, com recursos técnicos maiores e passar a utilizar uma técnica amadora, é dar um passo atrás. Este cinema reflete o seu tempo, não significando que em nível de linguagem ou estética houve um retrocesso. Ou que os temas e discussões não têm a mesma importância do que foi discutido na época do Cinema Novo. O momento político e histórico é outro, essa geração teve outra formação e tem outros anseios. O cinema guei reflete bem isto porque surgiu com uma temática que o cinema paraibano dos anos 60 não ousou fazê-lo. Não cabe aqui discutir porque naquela época o nosso cinema não fez, mas afirmar que, se os superoitistas fizeram, é porque sentiram necessidade de expressar e analisar, criticamente, a sexualidade através do cinema. Esta pesquisa não se fecha aqui e há um interesse por parte do autor de dedicar futuramente um estudo mais aprofundado a este tema.

Da mesma forma que o cinema guei discutiu a questão da sexualidade de uma forma crítica e questionadora, os filmes do Cinema Direto o fez em relação a outros assuntos, registrando os conflitos da nossa sociedade, discutindo problemas de diversas naturezas, sejam materiais ou ideológicos. A falha do Cinema Direto em conseguir satisfatoriamente seu intento está em sua metodologia, na qual se pode entrever um ranço colonialista.

É também um tema que se pode analisar sob outros aspectos e fica dado aqui o primeiro passo para futuras pesquisas deste cinema que deixou sua marca no contexto cinematográfico paraibano.

Notas

1. Entende-se por movimento cinematográfico como o conjunto de atividades na área de cinema, tais como crítica, filmes realizados, atividades cineclubistas, promoção de festivais e mostras de cinema desenvolvidas em João Pessoa.
2.In Filme Cultura. Rio de Janeiro: Edição da Empresa Brasileira de Filmes, julho/setembro de 1980.
3.Este texto foi publicado em 1986. Hoje Linduarte Noronha é professor aposentado da UFPB.
4.In Filme Cultura, idem.
5.SANTOS, Alex. Cinema e revisionismo. João Pessoa: Ed. União, 1983, p.39.
6. Jornal O Norte, 25 de janeiro de 1976.
7. Cadernos de Comunicação e Realidade Brasileira, publicação semestral da Oficina de Comunicação, agosto de 1980, p.29.
8. Trecho de um artigo publicado nos jornais A União, Diário de Pernambuco e Correio das Artes (07/11/82).
9.MARIE, Michel. Lectures du Film, p.78. Este texto foi distribuído durante um estágio em Cinema Direto na França, em cópia xerox. Não há mais referências.
10. Segundo Etienne Souriau realidade pró-fílmica é tudo que existe realmente no mundo, mas que é especialmente destinado ao uso fílmico, notadamente tudo que se acha diante da câmera e que impressiona a película.
11. Segundo o autor do texto, o cinema industrial não quer dizer filme industrial, nem a utilização do cinema na indústria, mas o modo de fabricação industrial dos filmes de espetáculos, largamente dominante nos nossos dias.
12. Apostila do Centro de Formação em Cinema Direto. Texto mimeografado do Nudoc, 1981. Tradução de Pedro Santos.
13. Após o Doutorado, Vânia transferiu-se para o Departamento de Comunicação da UFPB, onde ministrou aulas sobre cinema até aposentar-se. Continou fazendo filmes, dos quais se destaca o longa-metragem em 35mm Por trinta dinheiros, em parceria com seu marido Ivan.
14. Henrique ainda participou da produção e filmagem de Baltazar da Lomba, do grupo ativista homossexual Nós Também.


Pesquisa orientada pelo professor Luís Custódio da Silva. Texto feito como exercício didático para a disciplina de Pesquisa, do Curso de Comunicação Social da UFPB, publicado com o título A produção cinematográfica superoitista em João Pessoa de 1979 a 1984 e a influência do contexto social/econômico/político e cultural em sua temática no Caderno de Textos nº 8, do CCHLA da UFPB. João Pessoa: setembro de 1986, p.5-12.