quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Guerrilha na Maciel Pinheiro

Por Ramon Porto Mota

O relógio marcava quase dez da noite quando virei a esquina da Sá Andrade com a Maciel Pinheiro, no centro histórico de João Pessoa. No começo da rua já avistava a movimentação da equipe, que deveria ter chegado às 7h para preparar a locação e montar o equipamento. Até então não havia sido filmado um único plano sequer da ordem do dia e ainda faltavam alguns ajustes para que rodassem a câmera pela primeira vez no último dia de filmagem d’O Plano do Cachorro.

Calado e pisando devagar, fiz o que mais se faz em um set de filmagem: esperei. E em silêncio absoluto. O primeiro plano era, aparentemente, simplíssimo: um personagem (interpretado por Flávio Melo) próximo da câmera deitado no chão e o outro (interpretado por Nanego Lira) mais à frente, em pé. O primeiro levanta subitamente. Corta. Coisa rápida, sim? Bem, não. Faltava ajustar alguns detalhes, e o primeiro deles – a lista sempre é longa – ficou visível quando um caminhão pipa cortou a Maciel Pinheiro, passando a poucos metros da câmera.

Simples questão de continuidade: a chuva que caiu no primeiro dia de filmagem obrigou a equipe a molhar o asfalto da Maciel Pinheiro, obrigando a produção a se virar em busca de um carro pipa – ou então teríamos um plano com o chão molhado e o contra-plano com o chão seco. O pavor que Hitchcock nutria por filmagens em externas não sai por menos, e aqui se mostra sintomático, quando se quer o tempo bom se tem chuva, quando se quer chuva se tem o céu mais limpo. Afora isso – que já não é pouca coisa –, a equipe de fotografia brigava para iluminar a cena, que se passava à noite e no meio da rua, com um parque de luz não tão abundante.

A primeira movimentação no set já indicava uma filmagem difícil. Mas, que filmagem no meio da rua, com pouco dinheiro (ou seria com quase nenhum dinheiro? Como Godard filmou Acossado, quando não tinha dinheiro nem para comprar uma passagem de metrô) e à noite não é difícil? Ainda assim, esta era só a ponta do iceberg. O roteiro ainda pedia uma seqüência com um cachorro (que fora filmada um dia antes) e vários outros planos onde alguns carros passavam rente à cabeça do personagem estatelado no chão. Para um dos diretores d’O Plano do Cachorro, Arthur Lins, “o que no roteiro é um plano simples, um filme simples, no set você percebe que até a simplicidade exige muito trabalho, muito esforço”. Ainda mais quando você filma sem grana e em esquema de guerrilha. Neste caso (e talvez em todos os casos do cinema paraibano) o único esquema possível.


A idéia d’O Plano do Cachorro surgiu em uma noite de outubro de 2007 de uma vez só. Arthur Lins pensava compulsivamente em um filme que estivesse carregado de seus elementos estéticos e temáticos favoritos e que, segundo ele, não se encontravam facilmente no cinema paraibano: “Seria um filme que retratasse o universo urbano da madrugada, que causa medo, tensão e angústia, mas que ao mesmo tempo ressalta a solidão da cidade, a aspereza das relações entre as pessoas”. Enfim, Arthur buscava uma boa idéia para uma ficção em película que pudesse também ser um filme simples do ponto de vista de produção, e que tratasse de “desejos mórbidos, violência gratuita, cachorros vadios perambulando pela madrugada”.

O título do filme, O Plano do Cachorro, foi roubado do genial diretor norte-americano Sam Peckinpah – dono de obras-primas como: Meu Ódio Será sua Herança, Pistoleiros do Entardecer e Sob o Domínio do Medo, isso para ficarmos em apenas três exemplos –, que logo após filmar seus tiroteios, normalmente mais homéricos do que Ilíada, caía fora do ser ordenando ao diretor de fotografia: “agora, filma o plano do cachorro!”, um simples plano de cobertura, que Bloody Sam poderia utilizar a qualquer momento na montagem de suas magníficas cenas de ação.

O passo seguinte de Arthur foi procurar o parceiro Ely Marques e começar a desenvolver o roteiro; o que não demorou muito, pois logo eles maturaram a idéia e apararam as arestas, partindo direto para a segunda etapa (o terror de todo produtor independente): levantar a produção.

A princípio o negócio seria filmar em 35mm, aproveitando as latas de película cedidas pelo CTAV que Arthur e Ely receberam como prêmio pelo O Fazedor de Filmes (curta anterior dos diretores) no Cineport de 2007, e o equipamento de iluminação da QUANTA, outro prêmio que O Fazedor recebeu, só que dessa vez no Cine Esquema Novo, também de 2007. Porém, os altos preços de aluguel de uma câmera 35, somados à burocracia de conseguir a câmera emprestada no CANNE (Centro Audiovisual Norte e Nordeste) e a dificuldade de financiar o restante do orçamento do filme através de editais e incentivos (o projeto foi inscrito no FIC e no Fundo Municipal de Cultura de João Pessoa sem sucesso algum, o que terminou por atrasar, e muito, a produção do filme) obrigou-os a diminuir 19mm da película a ser usada, buscar a Arriflex 16mm da UFPB e iniciar o cronograma de produção.

Cansados de esperar pela bem aventurança do Governo, Arthur e Ely decidiram pela possibilidade mais urgente: levantar a produção no braço. Tomaram tal decisão no último mês de setembro e as filmagens foram marcadas para os dias 12, 13, 14 e 15 do mês seguinte. O pouquíssimo tempo entre a tomada de decisão e a filmagem foi superado – não sem dificuldades, é claro – com a ajuda do coletivo audiovisual Las Luzineides, que topou tomar parte no filme, ajudando a levantar a produção e buscando os apoios necessários para preparar a filmagem.


É aí que reside o trabalho duro de verdade, não que pensar o roteiro, mexer nos equipamentos e ensaiar os atores seja trabalho simples, mas correr atrás de estrutura para organizar um set, definitivamente, não é nada fácil. Conseguir a alimentação, o transporte, os equipamentos e a estadia de mais de vinte pessoas – uma equipe pequena, diga-se – é complicado, e as coisas pioram ainda mais quando o dinheiro é escasso e quando todo e qualquer detalhe fazem a diferença – vide a chuva que caiu no primeiro dia de filmagem e o caminhão pipa que foi obrigado a aparecer no último dia.

O SEBRAE-PB, o CTAV, a Quanta, a ABD-PB, a produtora Canário, a Flamboyant, a Vídeo Store, a Energisa, a FUNJOPE (Fundação Cultural de João Pessoa) e a Universidade Federal da Paraíba entraram como apoiadores do filme, garantindo apoios básicos para produção. Logo após garantir tais suportes, a produção d’O Plano do Cachorro começou a pensar em uma equipe que encarasse o projeto como algo coletivo e que, principalmente, topasse trabalhar sem receber dinheiro algum. Com isso, Arthur, Ely e Las Luzineides não tiveram maiores problemas. Conseguiram uma equipe muito bem preparada, que contou com o ator Nanego Lira, que atuou em O Grão, filme de estréia de Petrus Cariry, e com alguns dos melhores técnicos da Paraíba, como o diretor de fotografia João Carlos Beltrão e o diretor de som Guga S. Rocha. Vencidas as etapas de pré-produção, é hora de voltar-se para o set.


Depois de o caminhão pipa ensopar o asfalto da Maciel Pinheiro, de determinarem a marcação de luz da cena, de ajustar os detalhes de figurino (era preciso molhar a barra da calça do ator já que o chão estava encharcado), de ensaiar várias e várias vezes e de três takes batidos, os diretores e a equipe conseguiram matar o primeiro plano da noite. Também não havia maiores possibilidades de refazer ou mudar algum detalhe da cena, Arthur e Ely só dispunham de 10 rolos de película e O Plano do Cachorro está previsto para durar dez minutos, ou seja, para cada plano que fosse filmado, este só poderia ser re-filmado três vezes. Contingência de produção, resta aprender a lidar com ela.

As filmagens das cenas seguintes, grande parte complemento da seqüência do plano anterior, desenrolaram-se de forma parecida ao primeiro plano rodado: muita espera, preparação e ensaio antes de filmar o primeiro take. Variavam-se entre campos e contracampos do que parecia um silencioso duelo de olhares de olhares e gestos entre os personagens de Nanego Lira e Flávio Melo e planos que incluíam um Maverick 75 branco – que também foi ator/personagem no curta Cão Sedento de Bruno de Sales. Nas minhas contas (vocês sabem que a memória é algo que escorre pelos dedos, que não dá pra confiar totalmente) filmaram uns quatro planos do Maverick: dois do carro correndo a Maciel Pinheiro, cada um de um lado da rua; uma subjetiva do carro e outro plano do Maverick passando rente ao corpo de Flávio Melo deitado no chão.

Essa contagem de planos que fiz aí em cima, que um ser humano leva uns quarenta segundos para ler, tomou quase a noite toda. Quando fui olhar pro relógio novamente, os passarinhos já cantavam – se bem que em João Pessoa os passarinhos têm o costume de começar a cantar às duas da madrugada – e já faziam seis horas que eu tinha chegado à Maciel Pinheiro. A noção de tempo em um set de filmagem se dilata e se contrai simultaneamente, da mesma forma que tudo é extremamente demorado e gira em torno de uma grande espera para que cada atividade do set se organize, o tempo é escasso para a quantidade de coisas que se tem para fazer, terminando por esvair-se sem que você possa se dar conta totalmente.

Àquela hora da manhã, o cansaço batia e o corpo começava a pedir arrego – imagina o de quem estava nessa desde domingo (o último dia de filmagens se deu numa quarta-feira), das sete da noite às sete da manhã, João Carlos Beltrão, por exemplo, ficou quarenta e oito horas seguidas sem dormir –, mesmo assim ainda faltava uma única cena para rodar, colocada propositalmente, acredito eu, para o fim da madrugada do último dia de filmagem, já que os atores e a equipe teriam que subir correndo (várias vezes, é claro, mais de um plano e obviamente mais de um take) a ladeira da Cinco de Agosto, uma ruela pequena, estreita e escura que desemboca no fim da Maciel Pinheiro.

Da corrida de Nanego e Flávio a equipe filmou seis planos: um no qual João Carlos Beltrão, sentado na mala de um carro, filmava os atores subindo a ladeira; outros dois planos com a câmera fixa no chão para pegar os pés dos personagens; mais um plano em que Beltrão com a câmera no ombro corria atrás de Nanego e Flávio; outro plano para pegar as sombras dos intérpretes no chão; e por fim – agora não mais na ladeira da Cinco de Agosto, mas na Maciel Pinheiro – planos próximos e closes dos personagens.

A correria foi acabar quando o sol já havia nascido. Porém, as filmagens d’O Plano do Cachorro ainda não tinham terminado, faltava gravar o áudio da cena anterior, já que o diretor de som e o seu assistente não acompanharam a filmagem desses planos. Nanego e Flávio esbaforidos terminaram indo descansar e foram substituídos por Ivanildo Gomes – o personagem principal d’O Fazedor de filmes, que estava trabalhando de assistente de set – e Bruno de Sales – assistente de fotografia –, que correram pela Maciel Pinheiro no lugar dos atores.

Agora sim, fim das filmagens, mas não da produção d’O Plano do Cachorro. Além de desmontar, guardar e devolver todo o equipamento (de fios até o set de luz cedido pela QUANTA) utilizado no filme – a desprodução, como é chamada – começava também o momento de se preocupar com a finalização do curta. Talvez a etapa de produção que mais venha a dar dor de cabeça a Ely, Arthur e Cia.


Foi só quando o projeto d’O Plano do Cachorro não foi aprovado em nenhum edital que Arthur e Ely resolveram bancar a produção do filme. Os prêmios que receberam e os apoios que conseguiram ajudaram a financiar a filmagem e parte da finalização. O restante necessário para finalizar o curta “à altura do esforço de todos na produção e captação”, como bem disse Ely Marques, até o momento não existem e a equipe de produção vai ter que correr muito para levantar a grana.

Para a etapa de finalização, Arthur e Ely contam com uma parte da premiação que receberam do CTAV para iniciar o processo de pós-produção. A revelação da película 16mm já está garantida, mas só pode ser feita em laboratórios no sul do país, portanto falta o dinheiro para a passagem de avião e a estadia para que pelo menos um dos diretores possa acompanhar o processo de finalização do filme – que não se resume unicamente a revelação da película. Além da viagem, a produção d’O Plano o Cachorro terá que bancar o financiamento para outras etapas de finalização Falta conseguir o dinheiro para o telecine do filme, processo que passa a película para vídeo; a transcrição ótica do som na película; e o blow-up do 16mm para o 35mm – tipo de película padrão para captação e exibição profissionais de cinema.

Não há nenhuma data definida para concluir a produção d’O Plano do Cachorro. A idéia é tê-lo pronto para exibição em Janeiro ou Fevereiro de 2009, mas ninguém pode dizer ao certo se isso vai ou não acontecer. No momento em que fechamos essa edição a película estava para ser revelada e não havia grandes mudanças no panorama de financiamento da pós-produção.


As contingências de produção continuam atacando e transformando as produções independentes da Paraíba – aliás, do mundo inteiro –, tornando os esquemas de guerrilha (detonados como modelo de produção independente na Nouvelle Vague francesa da década de 60) para a captação e produção de filmes como quase que a única possibilidade para se filmar com liberdade aqui na Paraíba, já que pouquíssimas pessoas conseguem financiamento através de editais.

(Muitos desses editais, como o FIC e o FUMUC, são abertos a todo tipo de manifestação artística, o que gera um problema a priori, já que o esquema de produção e financiamento de cinema é muito mais custoso e difícil que qualquer outra forma de arte, necessitando de editais e esquemas de financiamento próprios. Talvez esteja na hora de começarmos a pensar em uma articulação para editais voltados exclusivamente para o audiovisual).

Um exemplo para o domínio do esquema de guerrilha na Paraíba está na quantidade de produções que foram e serão viabilizadas dessa maneira. No fim de 2007 e começo de 2008, Ronaldo Nerys e Helton Paulino realizaram seus filmes (As Bonecas de Davi e Terra Erma, respectivamente) neste esquema, quase sem nenhum apoio, financiado do próprio bolso. Agora no fim de novembro Bruno de Sales vai abrir uma guerrilha própria, iniciando uma produção (as barricadas serão abertas na Bica em João Pessoa), também filmada em película (só que em 35mm) e também filmada como Godard filmou Acossado, ou seja, com quase nenhum dinheiro. No último mês de 2008, Jhésus Tribuzi segue no mesmo caminho e vai abrir suas barricadas e levantar uma produção em insanos esquemas de guerrilha.

Para além do romantismo de filmar de maneira independente e com pouquíssimo dinheiro, produzir em esquema de guerrilha aqui na Paraíba, ao que parece, é a única forma de se produzir, e só quem trabalha assim sabe o quão infortúnia (sem trocadilhos) é uma situação como essa, mesmo que ninguém vá deixar de filmar por causa disso.

Por fim, Arthur Lins resume muito bem a situação: “Acho que o fazer cinema já é difícil e complicado por natureza. Em um processo mais convencional de se fazer ficção em película ou com a estrutura de produção costumeira de um set, como foi o caso d’O Plano do Cachorro, precisa-se de muita gente, muita mão de obra, e junto com isso, é comida, transporte, equipamentos, enfim muito esforço. No nosso caso, tem o lance de fazermos o curta sem a grana suficiente, apenas com apoios logísticos mínimos, então é complicado você deslocar as pessoas para trabalhar das sete da noite até às sete da manhã do dia seguinte e saber que todos ali têm outras coisas pra fazer no dia seguinte. É algo que é muito bonito e romântico no plano das idéias, do cinema de guerrilha, independente, mas na prática é algo realmente difícil, e aí você percebe que cinema se faz com grana mesmo, com idéias e vontade também logicamente, mas o fator dinheiro ainda é determinante. Acho que grandes filmes deixarão de ser feitos por falta de dinheiro. Não só aqui, mas no mundo todo”.

Ramon Porto Mota. Guerrilha na Maciel Pinheiro. In A Margem, Ano 2, nº 11. Campina Grande, PB: novembro/dezembro 2008, p. 9-11.

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