segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Mídia alternativa: modo de usar


Alfredo Boneff*

Duas manchetes, sobre o mesmo assunto, são, respectivamente, de 16 e 18 de abril de 2007. Uma foi veiculada na Internet. A outra, em mídia impressa. A primeira: “Movimentos sociais agitam o interior do País”. Manchete dois: “MST invade país e pede audiência a Lula”.

Não deve ser difícil para o(a) leitor(a) mais atento(a) fazer distinções. Por exemplo: qual delas teve destaque no site de uma agência de notícias que se pode classificar como mídia alternativa? E ainda: qual foi publicada num dos jornais de maior circulação do Brasil?

Mais do que diferentes abordagens, as manchetes da agência “Adital” sobre os agitos do MST e do jornal “O Globo” – que menciona invasões e o pedido de audiência – são emblemáticas para o início de uma discussão sobre a mídia alternativa.

Afinal, qual sua natureza, importância e espaço no atual contexto das comunicações no país? Como sobreviver dentro das leis de um mercado dominado por grandes grupos empresariais? Existem pontos em comum entre a mídia dominante e a que se diz alternativa?

Representantes da chamada mídia alternativa (que por vezes repudiam tal termo), de veículos pertencentes à grande imprensa e teóricos da comunicação convergem pelo menos em algo: trata-se de um debate incipiente, que ainda precisa ser bastante amadurecido.

Outros compromissos

Primeiramente, talvez fosse elucidativo demonstrar algumas características específicas da comunicação alternativa e da comunicação dominante. Os termos são utilizados por Valério Cruz Brittos, professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Unisinos, no Rio Grande do Sul, e presidente da seção brasileira da União Latino-Americana de Economia Política da Informação e da Comunicação (Ulepicc).

Em seu artigo “Comunicação dominante e alternativa: notas para uma análise a partir da economia política”, escrito em parceria com o também professor da Unisinos, Álvaro Benevenuto Jr, são apontadas, “sem redução conceitual”, algumas diferenças básicas.

No texto, uma das especificidades das empresas da mídia dominante seria o controle por meio de “sistemas privados ou estatais (democráticos ou autoritários) e ideologicamente ligadas às instituições de poder social, político e econômico, daí produzindo veículos voltados para públicos amplos (conteúdos generalistas) ou mais restritos (conteúdos segmentados)”.

De outro lado, a comunicação alternativa – mesmo com dinâmicas de produção muitas vezes semelhantes à dominante – estaria em outro campo, como oposição “ao pensamento único” e “ligada fortemente à denúncia social”.

Para Brittos, a natureza e a definição de comunicação ou mídia alternativa é um debate histórico, complexo. Mas alguns requisitos podem ser apontados. “Ela se caracteriza por ter outros compromissos, diferenciados da mídia hegemônica, que se traduzem em conteúdos de maior diversidade. São outras vozes e outros atores, outras formas de organização, diferentes do formato tradicional de organização das indústrias culturais”, analisa.

Mídia alternativa e história

Editor-chefe da Agência Carta Maior, Flávio Wolf de Aguiar recorre à história para abordar o que seria a mídia alternativa dentro de um contexto nacional. Ele cita o jornalista e diplomata Hipólito José da Costa (1774-1823), que fundou em Londres, em 1808, o “Correio Braziliense”, considerado o primeiro jornal brasileiro. “A mídia nasceu alternativa no Brasil. No jornal, ele defendia idéias liberais e a independência”, diz Aguiar.

O editor lembra ainda de jornais surgidos a partir de conflitos regionais como “O Povo”, diário oficial da Revolução Farroupilha, editado pelo jornalista italiano Luigi Rossetti.

Aguiar aponta a passagem do Império para a República Velha como o momento de consolidação de uma determinada natureza de empresas jornalísticas no país: “Eram empresas de caráter oligárquico, que defendiam o mundo das que então tinham orgulho em se proclamar ‘classes conservadoras’”.

Para ele, tal imprensa ganha força definitivamente ao apoiar o golpe militar de 1964, com práticas de autocensura e perseguição nas redações. “Só quando o regime ditatorial endureceu de vez e passou a censurá-la também foi que ensaiou passos na direção de se opor a ele, embora defendendo, por vezes, as mesmas idéias conservadoras”, afirma.

É nesse período que surge, na imprensa brasileira, o termo “alternativo”, caracterizando publicações oposicionistas ao regime militar como “O Pasquim” (1969), “Opinião” (1972), “Movimento” (1975) e “Em Tempo” (1977).

No ensaio “Imprensa alternativa: alcance e limites” o jornalista e professor Perseu Abramo (1929-1996) ressalta a dificuldade de caracterizar o verdadeiro papel de tais veículos nos anos 1960. “No sentido estrito do termo, essa imprensa nunca foi de fato alternativa à chamada grande imprensa ou imprensa burguesa, porque os leitores não dispensavam a leitura dos grandes periódicos, como ‘Correio da Manhã’ ou ‘Jornal do Brasil’, para se contentar com a leitura de ‘Opinião’ ou ‘Movimento’.”

Popular ou não-comercial?

Correspondente da agência de notícias IPS no Brasil, o jornalista Mario Osava concorda com Abramo. “Não gosto desse termo, pois esses veículos eram alternativos no sentido de oposição à ditadura. Mas eram voltados à mesma classe média. Apenas tinham uma conotação claramente política, ideológica, de esquerda. Hoje, existe uma grande variedade, uma montanha de publicações, é preciso encarar o assunto de forma mais complexa. Eu definiria este setor como não-comercial”, diz.

Na opinião de Nilton Viana, editor-chefe da agência “Brasil de Fato”, a definição mais adequada para este segmento seria o de “mídia popular”. “Seria aquela ligada a organizações populares, que tem compromisso com mudanças”, defende. Para Viana, uma efetiva democratização dos meios de comunicação no Brasil está relacionada diretamente à “existência de meios de comunicação capazes de refletir questões das sociedades locais”.

Mario Osava detecta incongruências nesta avaliação de mídia popular. “Minha agência até pode se encaixar nesse contexto de mídia alternativa. Mas ela, na verdade, faz o oposto do popular. Destina-se a um público até mais elitista do que a média; produz um tipo de informação dirigido mais a formadores de opinião, gente que já tem uma certa bagagem”.

Ex-editor da revista chilena “América Economia”, com passagens pelas redações de “O Globo”, “Jornal do Brasil” e “Gazeta Mercantil”, o jornalista Carlos Vasconcellos trabalha no momento em um projeto da área de comunicação da Petrobras. Na discussão sobre mídia alternativa, ele chama atenção para o fenômeno da Internet e seus desdobramentos.

“Normalmente se designa mídia alternativa a que não está vinculada a grupos corporativos de mídia, mas não creio que essa definição dê conta da variedade que a Internet está trazendo para a difusão e geração de informação. Hoje, a informação gerada em blogs ou de forma viral em sites abertos pode ter um impacto fenomenal”, analisa.

O professor Valério Cruz Brittos acrescenta que novos canais e mídias alternativas têm a capacidade de influenciar a mídia mais tradicional, caracterizando uma relação dialógica. “A mídia hegemônica trabalha hoje com laboratórios. Portanto, a absorção é inevitável. Mas são incorporações que obedecem a uma lógica de mercado”, adverte.

Ele cita como exemplos desta relação a micro-série “Hoje é Dia de Maria” e programas como “Central da Periferia”, da TV Globo, além de novelas como “Vidas Cruzadas”, da Record. Mas ressalva que estão longe se serem programas alternativos, apenas dialogam com mídias alternativas.

Ideologia e concentração

A auto-definição do Centro de Mídia Independente (CMI), em sua Política Editorial, como “uma rede anti-capitalista de produtores de mídia autônomos e voluntários” suscita pontos de vista divergentes quanto a determinados conteúdos da chamada mídia alternativa.

A relação entre ideologia e informação é uma das marcas do segmento, como demonstra o depoimento de Nilton Viana, da “Brasil de Fato”. “A mídia capitalista está concentrada nas mãos de meia dúzia de famílias e dita as regras de comportamento. A Brasil de Fato é um projeto político, nasceu das necessidades dos movimentos sociais. O MST foi propulsor da agência. Procuramos divulgar valores humanitários, socialistas”, afirma.

O quadro (faça o download), publicado no artigo de Valério Cruz Brittos, mostra que, de fato, a grande mídia no Brasil concentra-se em pequenos e tradicionais grupos. Para o pesquisador, isso caracteriza uma situação “que em nada se coaduna com o propósito de livre fluxo das informações e comunicação, além dos marcos mercadológicos”.

No entanto, Brittos alerta que o excesso de ideologização pode trazer conseqüências nefastas, perceptíveis em determinados veículos, ditos de esquerda, que “nem sempre trabalham dentro de um grau de democracia desejável”.

O jornalista Carlos Vasconcellos compartilha das críticas a publicações de linha editorial assumidamente ortodoxas. “Se por um lado é um canal de comunicação para esses grupos, muitos correm o risco de se isolar por radicalismo, sectarismo. Ou seja, falar apenas dentro do grupo, pregar para os convertidos à causa. E naturalmente, ficarem muito, muito chatos”, aponta.

Vasconcellos levanta ainda a questão da diversidade nos veículos da grande imprensa. Afinal, em que grau ela existe? “Menos do que deveria haver”, diz. “Mas existe, ao contrário do que muitos que militam contra a grande mídia acreditam. Ela é sim, muito concentrada e temos pouca mídia regional forte no país, o que é ruim”.

Flávio Aguiar rebate tais argumentações. Ele lembra da função das mídias alternativas de divulgar pontos de vista que não costumam ter espaço nos grandes veículos. “São conteúdos pouco privilegiados na ‘grande imprensa’. É a sociedade vista a partir dos movimentos sociais. Alguns, como o MST, demonizados na “grande imprensa”. Por vezes, a imprensa alternativa antecipa pautas que acabam se tornando decisivas. Veja o caso do meio ambiente. Na época da ditadura, meio ambiente era tema que dava cadeia, era censurado. Mas na imprensa alternativa ele aparecia”.

Penúria e inovação

A agência Carta Maior vem passando por uma grave crise financeira. No final de 2006, diversos contratos de patrocínio e de anúncios expiraram e os funcionários(as) ficaram meses sem receber salários. De acordo com Flávio Aguiar, o cenário tornou-se mais animador recentemente, quando uma empresa do setor privado interessou-se em fazer um contrato de publicidade com a revista. “É uma abertura rara e uma visão democrática. Isso pode levar a práticas muito inovadoras no setor”, acredita.

Inovação é justamente o que defende Mario Osava ao mencionar as dificuldades vividas por agências como Carta Maior e Adital. O momento de repensar fomentos ao setor é dos mais pertinentes, justamente quando o nosso sempre surpreendente Congresso ameaça aprovar o projeto do senador Marcelo Crivella (PRB-RJ), de incluir igrejas no Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac).

Osava propõe novas modalidades de financiamento para a mídia alternativa, que poderiam vir das verbas de publicidade do governo para a comunicação. “São veículos que não podem viver da forma tradicional de publicidade, que nunca vão conseguir anúncios. Existem políticas especificas para a agricultura, existem incentivos fiscais à cultura. Mas quanto à mídia, ninguém pensa nisso, está entregue às baratas. Nesse caso, não chega a ser nem neo-liberalismo. É liberalismo total, a lógica de quem pode mais”, aponta.

De acordo com Valério Brittos, uma das possibilidades de sobrevivência para o segmento seria a construção de modelos diferentes do empresariado tradicional. “Funcionariam com gestões pulverizadas. Também poderia haver financiamentos por meio de leis e a formação de um fundo de recursos vindos até mesmo do próprio mercado”.

Para Carlos Vasconcellos, o momento é de repensar diretrizes até mesmo para a mídia tradicional. A médio prazo, isso poderia resultar num cenário de comunicação bem diferente do atual. “Muita gente se questiona se haverá espaço comercial para a mídia tradicional, especialmente a mídia impressa, que vive uma grande crise de público. Nesse sentido, a mídia alternativa tem uma grande janela de oportunidade com a Internet. Acho particularmente que a grande mídia sobreviverá a essa crise, mas num mundo muito diferente do que estamos acostumados, no qual a mídia alternativa terá um grande papel”.

TV pública: independente ou chapa branca?

A iminente criação de uma rede pública de TV no Brasil é outro ponto que gera expectativa entre representantes da mídia alternativa. Nas projeções de como seria este novo canal torna-se evidente a decepção generalizada no que diz respeito à atuação do governo Lula no setor das comunicações.

Nilton Viana acredita que o projeto ainda precisa de muita discussão e amadurecimento para sair do papel. “É fundamental diferenciar o caráter público do estatal, para não se transformar numa TV chapa branca. Vai depender da estruturação, da forma de gestão”.

O editor da “Brasil de Fato” faz tais considerações baseado nas críticas ao governo que, para ele, ficou muito aquém das expectativas: “Não decepciona apenas na área de comunicação, mas de forma geral. Apesar de pequenos avanços na área social, é um governo apático e neo-liberal, refém das estruturas das elites, vide a repressão às rádios livres pela Polícia Federal”, dispara.

Mário Osava percebe a possibilidade da rede pública de TV como um campo de discussão sobre a mídia em geral. “Acredito que uma TV estatal e não-privada seja necessária. O papel da mídia alternativa dentro dessa rede também poderia entrar na pauta”.

O professor Valério Brittos também é favorável à existência da rede pública, com a ressalva de que seja um canal efetivamente público e não do executivo. “Para isso, existe a Radiobras. Essa TV poderia ser uma plataforma para a mídia alternativa. Mas não se pode esquecer que o governo do PT tende a instrumentalizar. É preciso, portanto, uma boa regulamentação e a gerência de um conselho”.

Pluralidade

Independentemente do modo de funcionamento da futura rede de TV, Mario Osava sintetiza um pensamento comum aos que militam na mídia, em suas variadas tendências, ideologias e matizes. “É preciso dar pluralidade aos meios de comunicação no Brasil. Temos vários veículos comerciais girando todos no mesmo mundo”.

O trecho final do artigo de Brittos e Benevenuto Jr também aponta neste sentido, concretizando-se em importante alerta para quem participa e vive da e pela mídia alternativa: “Se a história dos movimentos sociais não se separa da história da comunicação alternativa, o desafio para esse setor da sociedade é, cada vez mais, estar interagindo nos ambientes tecnológicos que têm sido criados pela própria estrutura de manutenção do capitalismo contemporâneo e buscar formas de liberar o acesso à informação”.

*Jornalista, colaborador do Ibase Publicado em 20/4/2007.

http://www.ibase.br/modules.php?name=Conteudo&pid=1776

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