quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Superoito e movimentos sociais

A produção cinematográfica superoitista em João Pessoa (de 1979 a 1984) e a influência do contexto social/econômico/político e cultural em sua temática

Bertrand Lira


I. Introdução

O cinema paraibano teve uma grande projeção nacional na década de 60, quando Aruanda de Linduarte Noronha foi considerado o deflagrador do Cinema Novo. Outros filmes como No país de São Saruê, de Wladimir Carvalho e Padre Zé estende a mão, de Jurandy Moura, realizados entre o final dos anos 60 e início dos anos 70, tiveram também uma boa repercussão. Sobre esse cinema o crítico Wills Leal escreveu Cinema e província e não faltaram análises em publicações especializadas (a revista Filme Cultura, por exemplo) e citações em diversos livros publicados no Sul do país.

Até os primeiros anos da década de 70, a produção de filmes em 16mm era razoavelmente considerável. É quando surgem, em 1973, as primeiras películas em super-8, na época ainda chamada de mini-bitola. O oito milímetros ainda não tinha banda magnética para registro do som em sincronia com a imagem, o que só se concretizou com o advento do super-8.

No segundo capítulo desta pesquisa há um breve histórico dos primeiros filmes realizados na Paraíba e do movimento cinematográfico(1) da década de 60. Não se trata de uma análise desses filmes, mas de um panorama do que foi realizado em termos de cinema e a importância que teve no contexto cultural do nosso Estado e no resto do país.

Em seguida, no terceiro capítulo, o tema é exclusivamente o cinema em super-8, desde o seu surgimento no Brasil em 1970 – quando foram exibidas as produções pioneiras nesta bitola durante o I Festival Nacional dos Primeiros Filmes – até a sua chegada na Paraíba, em 1973. Ainda neste capítulo, há um breve histórico do que o autor chama de Primeira fase do cinema super-8 que corresponde aos filmes produzidos a partir do seu surgimento (1973) até 1976. Da Segunda fase (1979 a 1983) há uma análise do movimento cinematográfico surgido nesse período, detendo-se com maior profundidade nos filmes oriundos dos três estágios em Cinema Direto, realizados pelo Núcleo de Documentação Cinematográfica (Nudoc), por se tratar de uma significativa produção, tanto pela qualidade de alguns filmes, como também por representar, em termos de quantidade, a maior parte das películas realizadas nesta fase.


Revisão de literatura

A literatura sobre o cinema superoitista não é um problema exclusivo da Paraíba, ela é escassa também em termos de Brasil. O que se tem publicado sobre o super-8 resume-se a manuais de instruções técnicas para o manuseio de equipamentos. O único livro que menciona o assunto no nosso Estado é Cinema e revisionismo, do crítico Alex Santos, mesmo assim em apenas três páginas, onde ele lista os filmes paraibanos realizados nesta bitola. Há todavia enganos, como por exemplo, mencionar Trabalhadores do Icó de Bertrand Lira e Torquato Joel, quando na realidade o filme chama-se Emergência e é somente de Torquato.

A Oficina do Curso de Comunicação (OC) Social chegou a publicar artigos e entrevistas sobre o cinema superoitista nos seus Cadernos de Comunicação e Realidade Brasileira. No número zero há um artigo de João de Lima: Gadanho – o que os estudantes escreveram, publicado em agosto de 1980. E, no número 1, há uma enquête com Jomard Muniz, Linduarte Noronha e Wills Leal, com o título Cinema Paraibano – Entrevista.

Sobre o Cinema Direto tem uma entrevista com o professor Pedro Santos – na época coordenador do Nudoc – noutra publicação da OC – Plano Geral, – uma coletânea de textos escritos pelos alunos de Crítica Cinematográfica do Curso de Comunicação Social da UFPB no primeiro semestre de 1981. A maior parte do material utilizado nesta pesquisa consiste em apostilas elaboradas pelo Centro de Formação em Cinema Direto para os seus estágios, entrevistas com os próprios realizadores, cuja contribuição foi bastante significante, e artigos de jornais.


II. História do cinema paraibano (as primeiras produções)

Foi por volta de 1918 que surgiram as primeiras realizações cinematográficas na Paraíba, com o fotógrafo oficial do governo, Pedro Tavares, registrando os acontecimentos mais importantes da cidade. Nessa mesma época, o exibidor Walfredo Rodrigues – que também incursionara pelo teatro, fotografia, literatura, arquitetura e urbanismo – se dedicava ao cinema, montando um laboratório onde revelava e copiava seus inúmeros filmes sobre coisas típicas, especialmente trabalhos ligados à agricultura. Sua produção era essencialmente documental e jornalística.

De 1917 a 1931 ele realizou nove edições de um Cine-Jornal que chamou de Filme Jornal do Brasil e eram apresentados na sua própria sala de exibição. Em 1923, ele documentou o Carnaval paraibano e pernambucano, um filme com esse nome e oitenta minutos de duração. Cinco anos mais tarde, em 1928, Rodrigues realizou Sob o céu nordestino (80 minutos), um documentário constituído de oito partes, sendo a primeira uma ficção sobre a presença indígena na Paraíba, do qual fora fotógrafo e produtor. Seu último filme Reminiscência de 30, realizado em 1931, sobre João Pessoa, registrava seus discursos, viagens pelo interior e o seu enterro(2).

Um anúncio do filme, impresso provavelmente quando de sua exibição em Cajazeiras em 1928, dizia o seguinte:

Sob o céu nordestino – Cinema Moderno
Hoje às 7 ½ horas em ponto
Filme natural de costumes
Um pouco da vida da “Fornalha ardente” – A fauna marinha – A pesca da baleia – O praieiro e sua irmã a jangada de vela – O Sertão – A flora sertaneja – O vaqueiro – O camboeiro – As pequenas manufaturas – O Brejo – A Capital – Monumentos – A arte e a natureza.
Com este filme a Nordeste (grifo do autor) desfaz o errôneo julgamento de quem não conhece a Parahyba, esta rica região do Nordeste Brasileiro.
Todo cajazeirense deve assistir a esse filme apanhado nos sertões parahybanos e que os jornais da capital têm tecido bastante elogios.

Este anúncio foi exposto durante a Semana Cultural Walfredo Rodriguez, realizada de 20 a 24 de agosto de 1984, na Fundação Casa de José Américo, em João Pessoa.

O cineasta Alex Viany deu o seguinte depoimento a Manfredo Caldas, depois da exibição de seu filme Cinema paraibano – Vinte anos depois: “... eu quero anotar logo de saída, uma coisa que me parece muito especial: o documentário do pioneiro Walfredo Rodriguez, Sob o céu nordestino, era uma novidade na época porque além de documentário, tinha um prólogo de ficção. (...) Walfredo Rodriguez está no princípio de tudo porque numa das primeiras exibições ele se impressionou com aquilo e começou a querer aprender”.


Cinema paraibano na década de 60

A criação do Cinema Educativo da Paraíba (CEP) em dezembro de 1955 pelo governador José Américo de Almeida foi um fato de bastante significação para o cinema paraibano. O CEP era um órgão subordinado ao Serviço Social do Estado e tinha como atividade principal prestar assistência à rede oficial de ensino, através da exibição de filmes, além de registrar os acontecimentos importantes na área governamental.

Até o início da década de 60, o CEP, no plano de realizações não fazia outra coisa a não ser documentar, sob a ótica dos próprios patrocinadores, as inaugurações de obras públicas no Estado, visitas e festas oficiais. No governo de Pedro Gondim, o CEP sofre uma ampliação em sua estrutura e estende as suas atividades, auxiliando as primeiras realizações do documentarista paraibano Wladimir Carvalho e incentivando o movimento cineclubista em João Pessoa. Desde a sua criação, o fotógrafo de cinema João Córdula dirige essa instituição que ele próprio ajudara a formar. Uns quatro anos antes, em 1951, ele havia andado pelo interior filmando a distribuição de gêneros alimentícios pelo interior do Estado, durante um período de longa estiagem.

É também nessa década que o cinema paraibano se projeta nacionalmente com Aruanda, documentário de 10 minutos, em 35mm, originado de uma pesquisa feita por Linduarte Noronha em 1958 sobre uma festa folclórica dos negros sertanejos de Santa Luzia. Lá o cineasta que até então não tinha incursionado pela realização de filmes, tomava conhecimento da existência de um aglomerado de antigos quilombados africanos, com economia própria de subsistência. Com o equipamento do INCE (Instituto Nacional de Cinema Educativo) e produzido pelo Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, Linduarte realiza em fevereiro de 1960 o filme que foi considerado o deflagrador do Cinema Novo. Uma questão que gera conflitos de opinião é a de que Linduarte não tinha consciência da importância que Aruanda teria para o documentário brasileiro. O próprio cineasta, hoje professor de Jornalismo Cinematográfico do Curso de Comunicação Social da UFPB, considera sem fundamento tal dúvida(3).

Linduarte, autodidata, emergiu de uma geração cineclubista da década de 40, junto com Wills Leal, João Ramiro Melo, Wladimir de Carvalho e José Rafael de Menezes. Suas atividades no cineclube consistiam em projeções no cinema de Fernando Honorato sempre seguidas de debates. Havia também a publicação de uma revista especializada, A Filmagem, sob a responsabilidade do romancista Virgínius da Gama e Melo, J. R. Melo, L. Noronha e Geraldo Carvalho.

Dois anos depois, Linduarte realiza seu segundo filme, Cajueiro nordestino, um documentário em 35mm, também produzido pelo INCE e Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, mas sem a vitalidade e o impacto que causou o seu filme anterior Aruanda.

Da geração cineclubista da década de 50 – que se juntou mais tarde a outros amadores de cinema na Associação dos Críticos Cinematográficos da Paraíba, a extinta ACCP – emergiu a produção cinematográfica mais significativa dos anos 60. Wladimir Carvalho e João Ramiro Melo realizaram Os romeiros da Guia (1962), um documentário em 35mm que eles próprios produziram. Em seguida, W. Carvalho, numa produção independente dirige A bolandeira e emigra para o Sudeste do país, onde permanece trabalhando nos jornais do Rio de Janeiro até o final de 1967. Ao voltar à Paraíba, filma a sua obra mais importante: O Rio do Peixe – que posteriormente se transformou no tão discutido O País de São Saruê.

A primeira versão do filme ficou pronta em 1968, ainda com o primeiro título e só em 1971 é que foi exibido a um pequeno público e escolhido para o Festival de Cinema de Brasília, mas São Saruê foi censurado sob a alegação de “ferir a dignidade e os interesses nacionais”. Talvez este filme não conseguisse tanta notoriedade se não tivesse sido detido pela censura federal. Mas isto, de modo algum, diminui a importância que esse documentário teve e continua tendo, ao registrar cinematograficamente as contradições sócio-econômicas de um sistema fundiário, sistema que eterniza privilégios para uma minoria de latifundiários e uma situação de miséria para uma grande parcela da população do Sertão nordestino.

Da primeira geração de cineclubes, surgiram algumas tentativas de realização em 1967, mas que entraram no rol dos filmes inacabados, como o crítico e cineasta Alex Santos classificou em seu livro Cinema e revisionismo: Curral do Peixe, de João Córdula, Libertação, de Carlos Aranha, Uma aventura capitalista, de Antônio Barreto Neto e Arribação, do próprio Alex Santos.

Em 1965, a Paraíba Produções Cinematográficas, do empresário Marcus Odilon R. Coutinho traz Walter Lima Júnior e realiza, em co-produção com Glauber Rocha, o longa-metragem baseado no livro homônimo de José Lins do Rego O Menino de Engenho.

“Uma outra geração emerge a partir de um curso de cinema ministrado no Rio de Janeiro em 63 por Arne Sucksdorff”(4), do qual participaram Paulo Melo (Contraponto sem música, curta-metragem em 16mm com 10 minutos, produzido por Virgínius da Gama e Melo, 1966) e Ipojuca Pontes (Homens do caranguejo, documentário em 35mm realizado em 1963). A maioria desses cineastas permaneceu na Paraíba na década seguinte, e alguns deles realizaram outros filmes. Em 1970, Linduarte Noronha dirige o seu primeiro longa-metragem e seu último filme, O salário da morte, baseado no romance de Zé Bezerra, com roteiro de W. J. Solha. Ipojuca Pontes realiza um documentário em 35mm, A poética popular (1970) e Wladimir Carvalho Incelência para um trem de ferro, emigrando ambos para o Sudeste do país, onde fixaram residência.

Em termos de quantidade de filmes produzidos, a década de 70 foi mais profícua do que a anterior, isto é, mais filmes foram realizados nas bitolas 16 e 35mm. No entanto esta pesquisa não se propõe a discutir essas produções, nem mesmo tecer um breve comentário ou um relato histórico como foi feito em relação à década de 60. O tema deste trabalho é o cinema em super-8 num determinado período que abrange os últimos anos de 70 e os primeiros anos 80.


III. O cinema superoitista, surgimento no Brasil

A década de 70 foi marcada pelo recrudescimento do autoritarismo exercido pelo regime militar instaurado no país desde 1964. A ausência total de liberdade de expressão – pois o direito à exploração dos canais de televisão e emissoras de rádio era concedido pelo Estado – foi a tônica desse período. Para exercer um rígido controle sobre os meio de comunicação de massa, o Estado utilizava mecanismos como a censura, através da Lei de Imprensa e a Lei de Segurança Nacional, como também a concessão de direitos para a utilização efetiva desses meios.

Foi nesse contexto político que se realizou em São Paulo (1970) o I Festival Nacional de Primeiros Filmes. Durante este evento, foram exibidas ao público as primeiras películas em super-8 com uma preocupação do fazer cinematográfico, evidenciada principalmente pela sua linguagem. Depois desse festival outros aconteceram, não só em São Paulo, mas também noutros Estados, resultando na formação de associações, cineclubes e cooperativas voltadas para a realização e discussão dos filmes nessa bitola. Os realizadores, através dessas organizações, iniciaram uma luta pelo reconhecimento do super-8 enquanto cinema e pela sua defesa do ataque por parte dos cineastas de outras bitolas e da má vontade de alguns órgãos do governo.

Em duas ocasiões, os cineastas brasileiros, amadores e profissionais, foram prejudicados pela política econômica do governo, quando tiveram de enfrentar uma grande elevação de preços das películas virgens e de equipamentos. A Cacex – órgão oficial responsável pelo comércio exterior – decretou um grande aumento na taxa de importação de filmadoras, editores, projetores e demais acessórios de filmagens, taxando-os de supérfluos.


Primeira fase

Essa fase do cinema superoitista em João Pessoa se inicia em 1973 com as primeiras realizações nesta bitola. É importante salientar que o chamado super-8, provido de banda magnética para registro do som simultaneamente com a imagem, só surgiu poucos anos depois. Até então se utilizava o oito milímetros com muito menos recursos. Neste ano, Paulo Melo, que em 1966 realizara Contraponto sem música (documentário em 16mm) filma nessa bitola A última chance. Ainda em 1973, outra película em oito milímetros é realizada por outro veterano: trata-se de O estranho caso de Leila, de Antônio Barreto Neto. Ele é o autor de Uma aventura capitalista, em 16mm e que engrossa o rol dos filmes inacabados, denominação dada por Alex Santos às películas que não chegaram a ser montadas e sonorizadas, mesmo tendo todas as suas seqüências concluídas(5).

Entre 1975 e 1976, surgem novas produções de veteranos do cinema paraibano e também de novos cineastas. Do primeiro grupo temos A guerra secreta de Antônio Barreto Neto em co-autoria com Sílvio Osias, Yoham, Absurdamente e Lampiaço de José Bezerra, A greve de W. J. Solha, que também é co-autor em Absurdamente e O coqueiro de Alex Santos, que mais tarde realizaria mais sete filmes nessa bitola. Outro profissional do cinema que, em 1970 dirigira o curta-metragem em 16mm Padre Zé estende a mão realiza em super-8 outro documentário: A festa de Iemanjá. “Um filme sobre o problema da incomunicabilidade humana ambientado nos diversos setores sociais”, é como um artigo do jornal A União (outubro de 1975) define O desencontro, o primeiro da trilogia por Archidy Picado. As duas outras películas em super-8, O garoto e Elegia para um homem só, que ele roteirizou e dirigiu, versam sobre o mesmo tema, a solidão.

Vale salientar que estas informações foram obtidas através de jornais e outras publicações, como também através de alguns poucos realizadores que se dispuseram a cooperar. As barreiras criadas por muitos deles em exibir suas antigas produções impossibilitaram o autor de vê-las. Por outro lado, esta pesquisa não se propõe a fazer uma análise crítica dessa produção, quase que totalmente desconhecida para o autor. Essas realizações chegaram ao nosso conhecimento somente através de literatura especializada. A nova geração de superoitistas praticamente nunca assistiu a um desses filmes. Talvez o problema da pouca divulgação dessas obras nesta década deva-se unicamente à recusa dos realizadores em exibi-los, já que oportunidades (as quatro Mostras de Cinema realizadas em João Pessoa) não faltaram.

O que se percebe é uma certa rejeição por parte dos cineastas às suas primeiras obras, talvez por vê-las mais criticamente anos depois do que na época em que foram realizadas. Alguns filmes foram exibidos na Primeira Mostra Paraibana do Cinema Amador Super-8, “uma promoção de críticos e cineastas amadores de João Pessoa, em reconhecimento aos 20 anos do Cinema Educativo da Paraíba e ao seu diretor João Córdula”(6).

É importante salientar que o CEP, com o advento dessa bitola na década de 70, passou a acompanhar de perto a produção superoitista da capital, prestando assistência técnica aos que experimentavam com essa mini-bitola, como era chamada na época.


Segunda fase (1979 a 1983)

A partir de 1979, inicia-se, no Brasil, um processo de abertura política com a revogação do Ato Institucional nº 5 (AI-5) que outorgava ao Presidente da República o poder de interferir nas mais diversas esferas da sociedade brasileira, com a concessão da anistia aos presos e exilados políticos e o fim da censura prévia à imprensa, vigorada durante os anos mais repressivos da ditadura militar que se instalou no país em março de 1964.

É nesse contexto de relativa liberdade política que Pedro Nunes e João de Lima, estudantes do Curso de Comunicação Social da UFPB, iniciam as filmagens de Gadanho, uma película em super-8 com cerca de 24 minutos de duração. Esse documentário sobre a atividade dos catadores de lixo do Baixo Roger surgiu, segundo relata J. de Lima, no Caderno de Comunicação e Realidade Brasileira, “a partir do momento em que lemos a reportagem publicada no Berro e em que constatamos no Vazadouro um problema social que precisava ser denunciado”(7).

Embora o Curso de Comunicação apresentasse disciplinas específicas de cinema, Gadanho foi a sua primeira oportunidade de realização na área de cinema, iniciada em janeiro daquele ano e concluída seis meses depois, contando com a ajuda de algumas pessoas interessadas no projeto. Esse filme foi para o cinema superoitista, no final da década de 70 e início de 80, o que Aruanda representou para o cinema paraibano na década de 60. Não se quer aqui comparar os dois filmes em termos de estética ou linguagem cinematográfica, mas o que cada um representou para o movimento cinematográfico da Paraíba quando foram realizados. Talvez a comparação pareça absurda pela importância e repercussão que Aruanda teve para o cinema documental brasileiro. O que se quer deixar bem patente aqui é a relevância que esse curta-metragem teve para o cinema superoitista. A partir dele, o cinema paraibano em super-8, já que a produção nas bitolas profissionais (16 e 35mm) se deu em pequeno número nesse período, ressurge em forma de movimento (sobre o conceito de movimento, ver nota 1).

Esta constatação foi feita a partir de depoimentos dos próprios superoitistas: Henrique Magalhães, autor de cinco filmes, incluindo um na linha documental do Cinema Direto, afirma: “Um dado importante foi a realização de Gadanho, pois a partir dele se rompeu com a estagnação do cinema na Paraíba. A gente só tinha conhecimento do que foi produzido durante o movimento do Cinema Novo. Havia uma produção em super-8, mas não era sistemática e alcançava um número muito mais limitado de pessoas. A partir de Gadanho houve uma retomada do cinema na Paraíba porque se alcançou um público maior e muita gente se interessou em fazer super-8”. Torquato Lima, co-autor de Imagens do declínio ou beba coca, babe cola com Bertrand Lira, também reconhece o impulso que o filme de Pedro Nunes e João de Lima deu ao cinema paraibano, inclusive com influência decisiva para que eles realizassem essa película sobre a invasão das multinacionais no Brasil.

Lauro Nascimento – autor de três filmes que contrapõem o profano e o sagrado – também ingressou na realização cinematográfica quando assistiu a Gadanho. Ele e Jomard Muniz de Brito são os únicos realizadores dessa fase que produziram todos os seus filmes com recursos próprios. Jomard é autor de inúmeros filmes, mas apenas três interessam a esta pesquisa porque foram realizados aqui e apresentam uma temática paraibana. Trata-se de uma trilogia: o primeiro, Esperando João (30 minutos, realizado em outubro de 1981), é um filme sobre João Pessoa, a cidade e Anaíde Beiriz, poetiza e amante de João Dantas, assassino de João Pessoa. Ela é a personagem central do filme e é apresentada em seis versões, duas delas vividas por travestis. O segundo, Cidade dos homens, é mais uma sátira do cineasta em cima de valores arcaicos e da presença forte do macho na cultura paraibana. E o último, Paraíba Masculina Feminina Neutra, é sem dúvidas o mais criativo e satírico filme desse cineasta que vive em constante atividade experimental no cinema. É com Paraíba M.F.M. que Jomard demonstra maior intimidade com a linguagem cinematográfica.

Sobre esse filme, Pedro Nunes escreveu: “... Desta vez não é uma aula ou um seminário com o prof. Luís Custódio da Silva, ou ainda as confidências em mesas de bar; é mais uma produção em super-8 que se soma a outras para desbravar novos espaços na província. O filme é Paraíba Masculina Feminina Neutra – de dosagem libertária e três tempos (presente/passado/futuro) reunidos no hoje, fazendo um movimentado percurso por favelas (Ilha do Bispo...) até o(s) palácio(s) da Redenção e Justiça. São doze personagens; palhaço Xuxu, professor Libertário, professora Libertina (marxicóloga da USP), Corisco/Lampião, Maria Bonita, Chicoteador, Anaíde Beiriz 1, Anaíde 2, Cantor, Ana e Bárbara e atônitos expectadores; todos pessoenses/Paraibanos/Nordestinos/Universais compõem o quadro visual, poético e ambulante construído por Jomard. Atores que representam, se inserem e transpõem a realidade de fatos que estão escondidos, porém agora colocados à tona para uma reflexão em ritmo de ruptura”(8).

É também nesse contexto de abertura que surgem grupos de militância sexual, racial e partidária, entre outros, que antes, devido à conjuntura política, permaneciam sem se manifestarem. Em João Pessoa, é criado o Nós Também, um grupo de militantes homossexuais que tinha uma proposta original, a de militar através da arte. Este grupo atuou, por quase três anos, publicando boletins, envelopes de arte (envelopes que continham fotos, poesias, arte-xerox etc), pichando muros, fixando outdoors e até com a produção e realização de um filme: Baltazar da Lomba.

Baseado num texto extraído do livro La Visitação – Denunciações de Pernambuco, o filme narra fatos ocorridos na Paraíba durante os dez primeiros anos da colonização portuguesa. Baltazar (o personagem), segundo os autos do Santo Ofício, era “um homem de aproximadamente cinqüenta anos, solteiro, de costumes femininos, que mantinha relações sexuais com os índios paraibanos”. O filme documenta as denúncias feitas contra Baltazar à inquisição portuguesa e vai mais além, ao levantar a discussão da ingerência do Estado na liberdade individual e a questão da formação da moralidade brasileira. Baltazar da Lomba, realizado no primeiro semestre de 1982, foi fruto de longas discussões entre os componentes do grupo, responsável pela sua produção, direção e realização, resultando num filme bem acabado.

A discussão da sexualidade no cinema paraibano – que até então era assexuado – começa com Esperando João (de Jomard Muniz) em 1981 e passa por Perequeté (Bertand Lira) no mesmo ano, mas só vai atingir uma abordagem mais ampla com Closes de Pedro Nunes. Talvez não seja o filme em super-8 mais visto na Paraíba, mas com certeza o mais discutido. O misto de documentário e ficção desse cineasta não traz nada de novo em termos de linguagem cinematográfica, mas contribuiu, inquestionavelmente, para uma ampla discussão da homossexualidade e, ao mesmo tempo, tornar o super-8 um cinema respeitado para os que, até então, duvidavam de sua seriedade. Closes, na sua parte ficcional, trata do relacionamento amoroso de dois rapazes que, ao optarem pela homossexualidade são severamente reprimidos. Um deles não suportando a pressão social deixa a cidade. A abordagem documental apresenta depoimentos de habitantes da cidade, transeuntes (homossexuais ou não, militantes de grupo feminista e homossexual etc). Pedrinho contrapõe esses discursos, uns preconceituosos e intolerantes, outros ingênuos, alguns politizados como o da feminista e do militante guei, e denuncia todo o preconceito social em relação às pessoas que optam pela livre sexualidade.

A esse cinema que discutia a questão da sexualidade deu-se o rótulo de cinema guei que, por falta de uma denominação melhor, ficou sendo utilizado. Deste cinema, fruto de um período histórico menos totalitário, surgiram filmes como: Acalanto Bestiale, Miserere Nobis e Segunda Estação de uma Via Dolorosa, de Lauro Nascimento. Em todos os três filmes, predomina uma preocupação na sua plasticidade (luz, tipos de planos e movimentos de câmeras), originada da larga experiência do cineasta em cenografia teatral. Outro filme que traz essa temática é Era vermelho seu batom, de Henrique Magalhães, uma ficção rodada em Baía da Traição, baseado na maneira do cineasta ver a homossexualidade e o próprio Henrique considera Era vermelho... um filme autobiográfico. É uma obra que trata da fragilidade das relações humanas e da falta de companheirismo e da solidão que ela provoca.

A temática homossexual no cinema paraibano merece análise mais profunda – a que esta pesquisa não se propõe desta vez – e ficam dados os primeiros passos para uma posterior continuidade do assunto por algum estudioso do nosso cinema. Trata-se de um cinema controvertido e de inegável importância pelo contexto político e social em que surgiu.


O Cinema Direto na Paraíba

Um evento de grande importância para o cinema paraibano foi a realização da VIII Jornada Brasileira de Curta-Metragem, em setembro de 1979. Na organização deste acontecimento participaram a Universidade Federal da Paraíba através da Pró-Reitoria para Assuntos Comunitários, o Ministério da Educação e Cultura, Funarte, Embrafilme, o Itamarati e o Governo do Estado da Paraíba. Pelo número de entidades envolvidas percebe-se a relevância desta Jornada – que naquele ano deslocou-se de Salvador onde anualmente se realizava.

Durante este evento, um grupo de cineastas paraibanos reunidos promoveu um encontro entre o reitor da UFPB, Lynaldo Cavalcanti, o governador do Estado, Tarcísio Burity e o Diretor Geral da Embrafilme, a fim de reivindicarem um apoio ao movimento cinematográfico da Paraíba que nos anos 60 deu expressiva contribuição para a afirmação cultural do cinema brasileiro.

Uma das providências da UFPB foi a criação do Núcleo de Documentação Cinematográfica (Nudoc) e a aquisição de equipamentos de produção audiovisual (câmeras, projetores, editores, gravadores). Parte desse material veio do Centro de Formação em Cinema Direto de Paris, depois do acordo feito per esta escola e o diretor do Comitê do Filme Etnográfico Jean-Rouch e do cineasta Jacques D’Arthuys, durante a Jornada, para a criação de um atelier de Cinema Direto na UFPB.

Após o regresso dos professores Pedro Santos e Jurandy Moura de Paris, onde fizeram um estágio no atelier de lá, inicia-se a elaboração do projeto para o primeiro estágio de treinamento de mão de obra cinematográfica em João Pessoa, o que só se concretiza em março de 1982. Este primeiro treinamento teve aproximadamente quatro meses de duração e consistia em uma introdução teórica, quando se assistia e discutia filmes, na sua maioria documentários e vários deles produzidos durante estágios semelhantes em Paris. No restante do curso, era dada ênfase à prática de realização: nos primeiros quinze dias de aulas o aluno era estimulado a realizar um pequeno exercício de câmera sobre uma ação qualquer (uma pessoa que entra numa cantina e bebe um café, por exemplo). Aproximadamente um mês depois, fazia-se o segundo exercício, esse com o tema escolhido pelo próprio aluno que deveria colocá-lo em discussão antes de filmá-lo. Para isto eram fornecidos dois cassetes (cartuchos) em super-8 com 3 minutos de duração e o equipamento necessário. O terceiro exercício ou filme final não tinha, teoricamente, limite em relação aos cartuchos utilizados e cada estagiário poderia, portanto, utilizar quantos fossem indispensáveis. Mas a prática mostrou que quem não conseguia apresentar um filme acabado, utilizando cerca de 20 cartuchos, acabava desistindo de fazê-lo no decorrer do curso.

Alguns estagiários decidiam pelo tema durante a realização do segundo exercício, o que significava o aproveitamento desse material rodado no filme final. Foi o que aconteceu com Romão praqui, Romão pracolá (Vânia Perazzo) e Sagrada Família (Everaldo Vasconcelos). Dos vinte alunos matriculados, alguns desistiram de continuar o estágio em Cinema Direto ao verem os primeiros resultados do material filmado, e outros não chegaram a concluir o exercício final, mesmo tendo feito algumas tomadas.

Mas, afinal, o que vem a ser Cinema Direto? Antes de qualquer tentativa de discussão sobre esse tema, faz-se necessário deixar claro que esta pergunta nunca foi satisfatoriamente respondida durante os estágios realizados aqui. O que esta pesquisa pretende é expor algumas citações sobre essa “escola de cinema”, encontradas em alguns textos utilizados durante os treinamentos em João Pessoa e em Paris. O texto de Michel Marie(9) sobre o Cinema Direto diz o seguinte:

O conceito de cinema direto denomina, a princípio, uma nova técnica de registro da realidade pré-fílmica(10). Este termo – que substitui o vocábulo ambíguo cinema verdade, no início dos anos 60 – se aplica, além de uma simples técnica, a toda uma corrente que revolucionou os métodos de realização antes completamente estandardizada sobre o modelo industrial exclusivo. A esta técnica responde uma estética fundada numa volta à função primordial da palavra e no “contato direto e autêntico” com a realidade vivida. Esta estética é o produto de uma ideologia neonaturalista, dominante nos cinemas novos dos anos 60. As conseqüências técnicas, estéticas e ideológicas do cinema direto são assim mesmo consideráveis e se desenvolvem ainda.

Sobre a técnica do Cinema Direto, Michel Marie acrescenta:

... Sem técnica estrita, o cinema direto denomina o registro sincrônico da imagem e do som. Este som registrado no momento da filmagem não é como o som da produção industrial, um som testemunha, mas o som real do filme, e não será nem sonorizado artificialmente e nem pós-sincronizado em estúdio. Som e imagem são, portanto, captados simultaneamente e são restituídos tal qual na projeção. Mas o direto designa também e sobretudo a simultaneidade da filmagem e do fato representado. Ao contrário do cinema industrial(11), ficcional e de espetáculo, não há, no caso do cinema direto, anterioridade da ação a ser filmada. Esta não é, portanto, pré-estruturada ou representada, mas é o próprio ato de filmagem que cria o fato ou evento fílmico.

São questionáveis as afirmações de Michel Marie em relação à técnica do Cinema Direto. A experiência dos estágios realizados no Nudoc e na Associação Varan em Paris as contradiz. No que diz respeito ao uso do som direto, isto é, sincrônico com a captação das imagens, é a tônica de sua técnica. Mas é muito comum – e a maioria dos filmes saídos dos ateliês de Cinema Direto fazem uso – o som off (som não sincronizado, onde a pessoa que fala pode estar em cena ou não).

Quanto à afirmação de que no Cinema Direto a ação não é “pré-estruturada ou representada” não é, em parte, verdadeira. No filme As cegas (Antônia Maria), por exemplo, a diretora não precisou pedir às três deficientes que fossem à feira mendigar para que ela pudesse filmar, porque era o que elas faziam todos os dias. Já em Perequeté (de Bertrand Lira) foi preciso que Francisco Marto, personagem do filme, representasse uma cena de uma de suas peças e outra de um dos seus shows para serem filmadas, já que na época das filmagens ele não estava atuando em nenhum desses espetáculos.

Vejamos o que o Centro de Formação em Cinema Direto diz de sua pedagogia: “O Centro de Formação não ensina, mas limita-se a responder perguntas. Perguntas que estão colocadas inevitavelmente na ordem muito natural, indo do mais simples ao mais complexo, porque a formação consiste em incentivar, logo de início, o aprendiz para a realização do seu filme. O que ele tem vontade de realizar”(12).

Dos métodos do Centro assinala:

- Não se expressa através de imagens por obrigação ou porque está na onda. Faze-o quando tem vontade.
- O verdadeiro realizador é o cameraman, com a sua maneira própria de enquadrar.
- Quando se pretende traduzir a realidade, através de imagens, nunca se fica neutro, o conceito de documentário é uma impostura, uma pura ficção intelectual.
- O Cinema Direto situa-se diametralmente oposto à reportagem televisionada, e galopa o mais longe possível das escolas de cinema.
- O academismo é denunciado de início como terrível inimigo.
- Nosso propósito é, no mais breve espaço de tempo, dar a qualquer um meios de utilizar o cinema livre em sua própria atividade (profissão), nas melhores oportunidades possíveis.
- Aquele não será apenas o realizador, mas ao mesmo tempo, cameraman, operador de som e de montagem, divulgador de seu filme. Isto quer dizer artesão – cinegrafista e, por sua vez, formador.

A afirmação de que o “conceito de documentário é uma impostura, uma pura ficção intelectual” não condiz com os preceitos de uma “escola" (embora o Centro de Formação em Cinema Direto se negue enquanto escola) que considera o som captado sincronicamente com a imagem, “um som real do filme”, e que recusa a ação “representada ou pré-estruturada”. Além do mais, desestimula os seus aprendizes a realizar filmes de ficção. O conceito que o Cinema Direto tem do cinema documental é algo a se questionar.

Entre o que propõe o Centro de Formação e o que realmente acontece na prática há uma certa distância: no primeiro estágio realizado no Nudoc, dos vinte alunos que iniciaram o curso apenas seis concluíram seus exercícios finais (ou nove filmes finais). Vale salientar que as pessoas que realizaram seus filmes já tinham, de certo modo, algum conhecimento teórico ou prático sobre cinema. Cinco deles eram estudantes do Curso de Comunicação Social da UFPB.

Essas dificuldades de realização foram atribuídas principalmente ao manuseio de equipamentos que, embora sendo amadores (super-8), apresentavam um certo obstáculo para alguns alunos. Mas o problema crucial parecia, na verdade, ser a falta de familiaridade com a linguagem cinematográfica. Além disso, tinha o fator tempo: o estágio, que programado para 60 dias, fora prolongado por mais 60 por não alcançar seus objetivos no prazo anteriormente fixado. O mesmo aconteceu nos dois estágios que se realizaram posteriormente.

Era praticamente impossível fazer com que um aluno que nunca tivera contato com a realização aprendesse a manusear – com apenas algumas aulas de técnica cinematográfica – filmadoras, como também sonorizar e fazer a montagem de seu filme. E o que parece mais difícil, se familiarizar com a linguagem do cinema em tão curto espaço de tempo. No segundo e terceiro estágios, percebe-se que as dificuldades apresentadas foram muito maiores, não só pelos depoimentos dos estagiários, mas pelos produtos (filmes) apresentados que foram em número menor.

Outro ponto questionável era a proposta de “liberdade” do Cinema Direto na escolha do tema e na forma de abordá-lo. Não havia uma proibição expressa do que se queria filmar, mas estimulava-se os temas que mais interessavam às diretrizes do Cinema Direto. Além do mais, durante todo processo de realização, havia um direcionamento para se filmar dentro dos “padrões técnicos e estéticos” dessa escola.

Dentro desses preceitos técnicos e estéticos foi realizada toda produção em super-8 do Nudoc durante os três estágios de treinamento de mão-de-obra cinematográfica, entre 1981 e 1983. O produto desses estágios era de filmes voltados para uma abordagem sociológica do sujeito (tema), cuja tônica era a relação do homem com a família, com seu trabalho e a questão da sobrevivência. Enquadra-se nesta linha documental o filme Ciclo do Caranguejo, realizado por Elisa Cabral (no primeiro semestre de 1982), professora do Departamento de Sociologia da UFPB, que descreve o processo de comercialização do caranguejo desde a sua pesca em Livramento – cidade do litoral paraibano – até a sua comercialização em bares e restaurantes de João Pessoa.

Emergência, de Torquato Joel, trata-se de um documentário sobre a vida de camponeses que habitam na bacia do açude de Orós (interior do Ceará) na época da grande estiagem de 1981. Ele enfoca, através de uma família, o problema da emigração causado pelas secas naquela região e as frentes de trabalho criadas pelo governo. Surge ainda um personagem interessante que poderia ser tema de um outro filme pela riqueza de informações que ele nos dá. É um barbeiro que vive da troca de seu trabalho por mercadorias (objetos e alimentos).

Percebe-se, nesses filmes, uma preocupação com a condição do homem na sociedade, de denunciar a sua situação de oprimido. Na época em que foram realizadas, o país se encontrava em pleno processo de redemocratização de suas instituições políticas e sociais (o que continua nos dias de hoje). Toda essa geração havia tomado consciência, há pouco tempo, dos anos de obscurantismo político por que passara o Brasil nos últimos vinte anos. Esses temas eram constantemente discutidos pela imprensa e também nas salas de aulas dos cursos da área de humanas. Daí essa preocupação em analisar e refletir esses problemas que afetavam a sociedade brasileira.

A vida de um trabalhador da construção civil é o núcleo do filme Mestre de obras, de Newton Araújo Júnior, que atribui a escolha do tema a pessoas ditas “politizadas”. Logo na primeira cena, ouve-se a voz do cineasta perguntando o que “seu José”, o mestre de obras, gostaria que as pessoas soubessem dele. Daí o filme segue essa orientação, mostrando a sua família – morando numa casa inacabada –, e seu relacionamento com os amigos da construção civil. A música composta por Chico César para Mestre de obras foi bem utilizada.

Seguindo ainda uma temática sociológica temos Romão praqui, Romão pracolá, de Vânia Perazzo, professora de Botânica do Curso de Agronomia, em Areia. Atualmente ela faz doutorado em cinema na Universidade de Nanterre (Paris)(13). Romão é uma dessas pessoas que parece nunca ter tido contato com a civilização moderna ou parado no tempo: é de uma ingenuidade inacreditável. Vânia, em seu filme, flagra momentos interessantes da vida deste músico, que constrói seu próprio instrumento musical – uma espécie de berimbau de lata, madeira e arame, com o qual realiza seus “espetáculos” nas feiras das pequenas cidades do Brejo paraibano. Como a maioria dos estagiários, ela também não tinha nenhuma experiência em realização cinematográfica, mas era fotógrafa amadora e interessada em cinema.

Durante o segundo estágio, mais quatro filmes, além do Ciclo do caranguejo (Elisa Cabral), optaram pela abordagem de problemas sociais: O menor, Manipueira, Bernadete e Do oprimido ao encarcerado. O filme de João Galvíncio Júnior, O menor, põe em conflito o discurso dos marginais mirins e o discurso das autoridades governamentais sobre a polêmica questão do menor abandonado em João Pessoa. Manipueira, de Maria Aparecida (Cidinha), também aluna do Curso de Comunicação Social, descreve o processo de colheita da mandioca até a fabricação da farinha – de modo artesanal e com instrumentos rudimentares – que abastecerá o mercado das pequenas comunidades. Com Bernadete, Maria das Graças Sousa relata a luta de uma lavadeira de roupas para sustentar seus três filhos, frutos de dois casamentos desfeitos, e sua mãe; seus sonhos de viver em São Paulo “onde pagam melhor e assinam documentos”; seu único lazer, o forró.

A partir da leitura do livro da professora Maria Salete, uma dissertação de Mestrado sobre uma experiência realizada num presídio de João Pessoa, baseada na metodologia do educador Paulo Freire, Marcus Antonio Vilar realizou Do oprimido ao encarcerado, um filme que os próprios presidiários ajudaram a fazer, participando como iluminador ou técnico de som. Marcus diz: “Já não gosto mais deste filme. Vejo mil defeitos. Eu saía só para filmar, às vezes algum estagiário do curso me ajudava com o som, ou um presidiário segurava o microfone”.

Fugindo um pouco dessa temática, por abordar um lado mais psicológico de seus personagens ou por focalizar o trabalho artístico dessas pessoas, estão os seguintes filmes: Perequeté, de Bertrand Lira, radiografa a vida de um ator e dançarino que, demonstrando muita garra, tenta superar o preconceito contra o artista da província. Através de depoimentos de Francisco Marto, cujo apelido vem de uma peça infantil em que interpretou o coelho Perequeté, constata-se que o preconceito não é contra o artista em si, mas contra a livre opção sexual de cada indivíduo. “As pessoas acham que todo homem que faz dança é homossexual e que toda mulher é uma prostituta ou lésbica”, diz Perequeté em voz off numa das cenas em que aparece dançando.

Sagrada Família é a câmera violando a própria casa do realizador desta película (Everaldo Vasconcelos), descobrindo conflitos e revelando as neuroses de uma família de classe média baixa em João Pessoa. É um filme tenso e dramático que demonstra a grande intimidade do cineasta com a sua câmera e o objeto filmado. Tá na rua, de Henrique Magalhães, mostra, em 15 minutos, o trabalho de experimentação de um grupo amador em novos campos da dramatização. O autor teve sérios problemas em realizá-lo porque o grupo vindo do Sudeste do país estava participando de um encontro de teatro amador e Henrique teve de fazer todas as filmagens em apenas uma semana sem poder ver o resultado do que se filmava para estruturar melhor seu filme. As falhas técnicas não puderam ser contornadas e ele usou o material que tinha em mãos. Depois de Tá na rua, ele só realizou um documentário a mais, Les Etoiles, em parceria com Torquato Joel, durante estágio semelhante em Paris. Daí partiu para a ficção com Era vermelho seu batom(14).

Sonho de uma estrela é a vida de um artista de interior sem perspectiva de profissionalização e nem acesso aos produtores de discos. A frustração de não poder ser famosa a deixa profundamente descrente. É o filme final do autor de peças teatrais Eliézer Rolim. Pedro Osmar em carne e osso, de Otávio Cássio e Música sem preconceito, de Alberto Júnior são mais dois filmes que fogem à abordagem sociológica dos anteriores. O primeiro fala dos experimentos musicais e da vida do compositor Pedro Osmar e a sua atuação no grupo Jaguaribe Carne. O segundo trata do rock como forma de interação entre um grupo de jovens de classe média alta de Tambaú.

Durante o segundo estágio (primeiro semestre de 1982) e o terceiro (janeiro de 1983) quando foram realizados Ciclo do caranguejo, Sonho de uma estrela, O menor, Bernadete, Manipueira, Eleições (realização coletiva), Música sem preconceito, Fim de jornada (de Ana Lúcia Toledo), Pedro Osmar em carne e osso e Quando um bairro não se cala, o equipamento de filmagem (câmeras) já apresentava alguns problemas. Isso teve conseqüências desastrosas para alguns desses filmes, principalmente em relação ao som direto.


IV. Conclusão

Sempre que se discute o movimento cinematográfico paraibano da década de 60 e início de 70, inevitavelmente se compara essa produção com uma mais recente, a do cinema superoitista dos últimos cinco anos. O cinema paraibano, é necessário reconhecer, empobreceu seriamente. O que antes era filmado em 16 e 35mm, bitolas profissionais, passou a ser feito com o super-8, uma bitola amadora e com poucos recursos. Esse empobrecimento se deu em conseqüência da crise econômica que tem sofrido o país. O Brasil chegou aos anos 80 com uma das maiores dívidas externas do mundo e com uma política econômica que provocou uma perda cada vez maior do poder aquisitivo da população. A sua política cultural e educacional tem causado a maior crise que a Universidade brasileira já viveu.

Diante de toda essa conjuntura sócio-política e econômica, a produção cultural não poderia ficar impune, mormente o cinema. Porque este depende da aquisição de equipamentos – na sua maioria importados – e de películas virgens, só obtidas exclusivamente através da importação. A taxa sobre esta transação comercial é controlada pela Cacex – órgão responsável pelo comércio exterior. Tudo isso, aliado ao monopólio da indústria cinematográfica, isto é, os fabricantes de filmadoras, projetores, editores e demais acessórios de filmagens que encarecem seriamente a realização de um filme.

Não é de se esperar, portanto, que hoje toda essa geração de novos cineastas esteja com uma super-8 na mão, emprestada na maioria das vezes por órgãos oficiais ou instituições (a Universidade, por exemplo) e mendigando um ou dois cartuchos para realizar um curta ou curtíssima metragem. Dos filmes realizados, a maioria foi produzida pela UFPB ou através dela pelo Programa Bolsa-Arte da Pró-Reitoria para Assuntos Comunitários, Oficina de Comunicação do Curso de Comunicação Social ou do Núcleo de Documentação Cinematográfica – Nudoc, sendo este último o que mais contribuiu para o movimento cinematográfico dos últimos cinco anos.

O que esta pesquisa procurou fazer foi analisar duas tendências do cinema em super-8 de João Pessoa de 1979 a 1984, quando este surgiu em forma de movimento cinematográfico a partir da realização de Gadanho. A produção fílmica que introduziu a discussão da questão homossexual e da sexualidade em geral foi rotulada de cinema guei. Este cinema foi fruto de mudanças, principalmente políticas, na sociedade brasileira durante a chamada abertura política. Os grupos de minorias sexuais se organizaram decidindo colocar na pauta do dia discussões antes proibidas pelo regime totalitário. Em João Pessoa, um grupo de militância homossexual, o Nós Também – que tinha como membros alguns cineastas – utilizava a arte como forma de luta. Além dos filmes dos cineastas militantes, o grupo produziu e realizou conjuntamente um curta metragem.

Uma grande parte da produção superoitista dessa época veio do Nudoc, que realizou três estágios didáticos voltados para a formação de cineastas na linha documental do Cinema Direto. A proposta do Cinema Direto era de uma não-sofisticação da linguagem, colocando o cinema como instrumento e veículo de expressão para as pessoas que quisessem e pudessem fazer uso dele. Durante os três estágios, 25 filmes foram realizados pelos alunos, além de outros, cuja produção o Nudoc financiou.

Geralmente ao se analisar o cinema paraibano, o movimento superoitista é sempre tratado com um certo preconceito. É muito comum os críticos afirmarem que o “cinema super-8” significou um retrocesso na cinematografia paraibana. Quanto a isto, não há o que se discutir. É óbvio que deixar de trabalhar em bitolas profissionais, com recursos técnicos maiores e passar a utilizar uma técnica amadora, é dar um passo atrás. Este cinema reflete o seu tempo, não significando que em nível de linguagem ou estética houve um retrocesso. Ou que os temas e discussões não têm a mesma importância do que foi discutido na época do Cinema Novo. O momento político e histórico é outro, essa geração teve outra formação e tem outros anseios. O cinema guei reflete bem isto porque surgiu com uma temática que o cinema paraibano dos anos 60 não ousou fazê-lo. Não cabe aqui discutir porque naquela época o nosso cinema não fez, mas afirmar que, se os superoitistas fizeram, é porque sentiram necessidade de expressar e analisar, criticamente, a sexualidade através do cinema. Esta pesquisa não se fecha aqui e há um interesse por parte do autor de dedicar futuramente um estudo mais aprofundado a este tema.

Da mesma forma que o cinema guei discutiu a questão da sexualidade de uma forma crítica e questionadora, os filmes do Cinema Direto o fez em relação a outros assuntos, registrando os conflitos da nossa sociedade, discutindo problemas de diversas naturezas, sejam materiais ou ideológicos. A falha do Cinema Direto em conseguir satisfatoriamente seu intento está em sua metodologia, na qual se pode entrever um ranço colonialista.

É também um tema que se pode analisar sob outros aspectos e fica dado aqui o primeiro passo para futuras pesquisas deste cinema que deixou sua marca no contexto cinematográfico paraibano.

Notas

1. Entende-se por movimento cinematográfico como o conjunto de atividades na área de cinema, tais como crítica, filmes realizados, atividades cineclubistas, promoção de festivais e mostras de cinema desenvolvidas em João Pessoa.
2.In Filme Cultura. Rio de Janeiro: Edição da Empresa Brasileira de Filmes, julho/setembro de 1980.
3.Este texto foi publicado em 1986. Hoje Linduarte Noronha é professor aposentado da UFPB.
4.In Filme Cultura, idem.
5.SANTOS, Alex. Cinema e revisionismo. João Pessoa: Ed. União, 1983, p.39.
6. Jornal O Norte, 25 de janeiro de 1976.
7. Cadernos de Comunicação e Realidade Brasileira, publicação semestral da Oficina de Comunicação, agosto de 1980, p.29.
8. Trecho de um artigo publicado nos jornais A União, Diário de Pernambuco e Correio das Artes (07/11/82).
9.MARIE, Michel. Lectures du Film, p.78. Este texto foi distribuído durante um estágio em Cinema Direto na França, em cópia xerox. Não há mais referências.
10. Segundo Etienne Souriau realidade pró-fílmica é tudo que existe realmente no mundo, mas que é especialmente destinado ao uso fílmico, notadamente tudo que se acha diante da câmera e que impressiona a película.
11. Segundo o autor do texto, o cinema industrial não quer dizer filme industrial, nem a utilização do cinema na indústria, mas o modo de fabricação industrial dos filmes de espetáculos, largamente dominante nos nossos dias.
12. Apostila do Centro de Formação em Cinema Direto. Texto mimeografado do Nudoc, 1981. Tradução de Pedro Santos.
13. Após o Doutorado, Vânia transferiu-se para o Departamento de Comunicação da UFPB, onde ministrou aulas sobre cinema até aposentar-se. Continou fazendo filmes, dos quais se destaca o longa-metragem em 35mm Por trinta dinheiros, em parceria com seu marido Ivan.
14. Henrique ainda participou da produção e filmagem de Baltazar da Lomba, do grupo ativista homossexual Nós Também.


Pesquisa orientada pelo professor Luís Custódio da Silva. Texto feito como exercício didático para a disciplina de Pesquisa, do Curso de Comunicação Social da UFPB, publicado com o título A produção cinematográfica superoitista em João Pessoa de 1979 a 1984 e a influência do contexto social/econômico/político e cultural em sua temática no Caderno de Textos nº 8, do CCHLA da UFPB. João Pessoa: setembro de 1986, p.5-12.

Um comentário:

Lucas Milhomens disse...

Bastante interessante a história recente do cinema Paraibano. Para quem não é da terra, algumas informações foram esclarecedoras.Vamos dialogar em sala agora!

Abraços!