terça-feira, 30 de setembro de 2008

Indigestos e sedutores: o submundo dos quadrinhos marginais


Henrique Magalhães

 

As histórias em quadrinhos nasceram no jornalismo no século XIX com manifestações em vários países, inclusive o Brasil, com As aventuras de Nhô-Quim ou impressões de uma viagem à Corte, de Angelo Agostini, em 1869. Os quadrinhos eram então humorísticos, com forte crítica política e social, aproximando-se da charge e do cartum. Esse tipo de quadrinhos daria origem à tira diária, no início do século XX.

As primeiras décadas do século XX viram surgir outros gêneros de quadrinhos, com o desenvolvimento da imprensa e a criação de distribuidoras, os chamados syndicates. Aventura histórica, aventura nas selvas, histórias infantis, ficção científica, histórias policiais, super-heróis, histórias de guerra, a criatividade não tinha limites para os autores de quadrinhos, que diversificaram as temáticas e conquistaram um grande público. Se inicialmente os quadrinhos sugeriam uma leitura crítica e em seguida infantil, logo conquistaram o público juvenil, veiculando histórias heróicas e fantásticas.

Na década de 1950, nos Estados Unidos, as histórias em quadrinhos consolidaram-se como produto da indústria cultural com a produção em massa de revistas das mais diversas temáticas. Editadas em grandes tiragens em papel barato e preço módico, as revistas se popularizaram, em particular as que apresentavam histórias de terror, como a Creepy e a Tales from the Cript, ficção científica, guerra e super-heróis, trazendo histórias repletas de sangue e mortes trágicas.

Contudo, na visão de Fabiano Barroso (In Bagnariol. 2004, p.85), nem tudo era lixo. "Gandes autores americanos tomariam parte na produção desses quadrinhos, como Jack Davis,Wallace Wood, Harvey Kurtzman, que anos antes fizera parte dos estúdios de Will Eisner, e Steve Ditko, que pouco depois ajudaria a criar o famoso super-herói Homem Aranha. Grandes talentos da literatura fantástica, como Ray Bradbury, também tomavam parte nestas HQ, fazendo roteiros."

Essa onda avassaladora de quadrinhos com teor sórdido e pessimista iria chamar a atenção de pais e educadores, que já não viam esse tipo de publicação com bons olhos. Os quadrinhos eram, então, considerados uma para-literatura deletéria à infância e à juventude, tidos como desviantes da verdadeira e edificante leitura. A resposta veio em forma de lei aprovada no Senado dos Estados Unidos em 1956 estabelecendo a censura aos quadrinhos através de um código de ética, e condenando à extinção as revistas mais populares. A lei teve como base o estudo do psiquiatra Dr. Frederick Wertham, que havia publicado dois anos antes o livro Seduction of the innocent, onde atribuía aos quadrinhos o poder de seduzir os jovens induzindo-os ao crime e ao suicídio.

Com a proibição das revistas de terror, crime, guerra, eróticas e de ficção científica, algumas editoras mudaram sua linha editorial para continuar no mercado. Criaram as revistas humorísticas, notabilizadas pela revista Mad, editada por Bill Gainnes, que burlavam o código de ética atribuído às revistas em quadrinhos ao apresentar não só quadrinhos, mas textos satíricos tendo como alvo os sucessos de Hollywood e os costumes da sociedade estadunidense. Barroso (In Bagnariol. 2004, p.86) realça que o formato Mad faria história, “influenciando autores e publicações pelo mundo afora ao longo dos anos. A revista seria vitrine para o trabalho de grandes artistas: Jack Davis, Bill Elder, Harvey Kurtzman, Wallace Wood, Sérgio Aragonés, Don Martin, Al Jaffe...”

Outra conseqüência da implantação do código de ética foi a expansão do universo dos super-heróis, com o ressurgimento de antigos personagens e a criação de um panteão de novos super-seres. As editoras DC Comics e Marvel Comics se consolidaram no setor, com histórias bem comportadas, dentro dos padrões dos bons costumes da sociedade conservadora. Os personagens passaram a ser mais importantes que os autores no gosto do público, estabelecendo um rodízio de roteiristas e desenhistas próprio ao processo industrial, que exigia grande e ininterrupta produção.

No bojo das transformações que tomavam de assalto a sociedade estadunidense na década de 1960, os autores de quadrinhos reagiram recuperando sua identidade e postura crítica. Era a explosão da contracultura e do movimento hippie, que questionavam à política imperialista do país protagonizada pela Guerra do Vietnã.

Essa onda de contestação generalizada ficou conhecida como movimento underground, que pretendia transformar todo o sistema vigente. Para Sonia Luyten (1985), “o líder deste movimento foi Nerville, que propunha uma solução tendo como origem as comunas rurais e a mudança da concepção de família, peça-base da organização de uma sociedade. Isto provocou uma espécie de contracultura, uma cultura marginalizada”. O movimento alastrou-se por várias expressões artísticas, donde os quadrinhos foram um dos expoentes.

Surgiram, então, os quadrinhos underground como expressão de uma cultura contestatória e irreverente, à margem do mercado editorial. Nomes como Robert Crumb, Gilbert Shelton, Bill Griffith, Victor Moscoso e Richard Corben tornaram-se célebres ao publicar com recursos próprios revistas em quadrinhos que desafiavam o código de ética e a censura imposta ao mercado. Delas, a mais famosa foi Zap Comix, lançada em 1967 por Crumb.

O caminho aberto por Crumb, expoente máximo do movimento, segundo Román Gubern (1980), “se revelaria fecundo e originaria uma seqüência de comics revolucionários que não almejavam o lucro nem a popularidade dos respectivos autores, mas o protesto de sinal libertário, com freqüente recursos à extravagância, à escatologia e ao erotismo desaforado, expressos num grafismo agressivo e pouco tranqüilizador, batizado como feísmo”.

Foi na Zap Comix que circularam personagens exóticos e pornográficos, como Mr. Natural e Fritz the Cat, de autoria de Crumb. Mr. Natural era uma espécie de guru do movimento hippie, mas que ao mesmo tempo gozava com a ingenuidade e falta de objetividade da rebeldia juvenil. A personagem era um baixinho de longas barbas brancas que pregava a desobediência civil mesclada com princípios filosóficos orientais, mas sem abrir mão dos prazeres carnais, representados por voluptuosas mulheres. Fritz the Cat era um gato com idéias revolucionárias e que freqüentemente se envolvia em grandes orgias no melhor clima da liberação sexual da época. Esse personagem chegou a ter um filme longa-metragem de animação realizado por Ralf Bakshi em 1972, tornando-se um clássico do gênero.

Outro protagonista dos quadrinhos underground foi Gilbert Shelton, criador dos Freak Brothers, em 1967. Como descreve Sadoul (1989), The Fabulous Furry Freak Brothers era composto por Phineas, Freewheelin’ Frank, Fat Freddy e seu gato. Sua legenda era que se vive melhor sem dinheiro e com erva (maconha) que com dinheiro e sem erva. A única atividade dos irmãos era a busca frenética da droga; frenética mas descontraída, pois Shelton soube conservar em sua história em quadrinhos um tom humorístico.

Os quadrinhos underground não se restringiram aos Estados Unidos. Mesmo fora do esquema de distribuição dos syndicates eles eram reproduzidos em todo o mundo, sem que se desse muita importância aos direitos autorais. No Brasil, Fritz the Cat e Mr. Natural foram publicados no início dos anos 1970 na revista Grilo, especializada em quadrinhos intelectualizados para um público adulto. Esta revista e os quadrinhos de vanguarda estadunidenses e europeus influenciaram toda uma geração de autores brasileiros, que produziram suas próprias revistas “marginais”.

Além de representar as comunidades alternativas, os quadrinhos underground tinham como tema a sexualidade, a violência, os hippies, a droga e a ecologia. Para Sonia Luyten (1985), “os quadrinhos underground inspiraram-se em algumas histórias sadomasoquistas dos anos 40 e 50 e também parodiavam os personagens da idade de ouro (anos 30), colocando os heróis como Tarzã e Flash Gordon numa intensa atividade sexual”.

Esse tipo de quadrinhos, repleto de sexo, iconoclastia e crítica ao modelo de civilização ocidental, passou a ser conhecido por comix, num contraponto aos enquadrados comics. Eram revistas independentes impressas em preto e branco, em papel barato, vendidas de mão em mão pelo próprio autor em contato direto com seu público. Os quadrinhos underground apresentavam estilos e propostas visuais variados, utilizando uma estética caricatural e realista, mas com aspecto sujo, carregado de traços e hachuras, expressando a sensibilidade do autor. Este detinha o domínio sobre sua obra, mesmo quando seu trabalho era publicado por editoras comerciais.

César Silva (In Guimarães, 2005, p.20) afirma que este modelo de HQ “influenciou fortemente os quadrinhistas brasileiros da geração Anos 1970, que estão atualmente ocupando os poucos nichos disponíveis do mercado brasileiro”. O melhor exemplo dessas publicações editadas no formato de pequenas revistas foi a que surgiu em São Paulo, em 1972, pelas mãos dos estudantes da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. A revista Balão expôs o trabalho de nomes que se consagrariam nas artes gráficas brasileiras, a exemplo de Laerte e os irmãos Caruso.

As revistas autoproduzidas pelos autores dos comix também influenciaram diretamente os fanzines, que tomaram impulso a partir da década de 1970. Como publicações amadoras e sem fins lucrativos, os fanzines se prestavam a todo tipo de experimentação, com preferência às expressões pouco usuais não contempladas pelo mercado. Além da crítica e da análise sobre os quadrinhos, os fanzines fizeram surgir novos autores que não encontravam espaço nas publicações comerciais.

Reagindo à banalização dos quadrinhos, a Europa daria uma enorme contribuição para o reconhecimento dessa expressão como arte. Os fanzines e revistas publicadas pelos grupos de estudo franceses, que reuniam acadêmicos, cineastas e outros intelectuais valorizaram os quadrinhos como linguagem e resgataram as grandes obras que influenciaram sua formação. Ao mesmo tempo em que contestavam a visão preconceituosa dirigida aos quadrinhos, atribuíam-lhes o status de arte, consagrando-os como a nona arte.

 Precursores entre nós

 Antes mesmo do surgimento dos quadrinhos underground nos Estados Unidos muitos autores ensaiavam quebrar o paradigma de que os quadrinhos eram feitos apenas de histórias heróicas, ingênuas e infantis. Na América do Norte circularam os famosos dirties comics, também conhecidos como Tijuana-Bibles. Estas pequenas revistas pornográficas, parecidas com os nossos "catecismos", surgiram nos Estados Unidos na década de 1920, fazendo paródia aos astros do cinema e personagens dos quadrinhos praticando sexo explícito. Esse tipo de publicação “marginal” perdurou até a década de 1950.

Uma coletânea dessas revistas foi organizada pelo jornalista Gonçalo Júnior, com o título de Quadrinhos Sujos. A coleção traz histórias muito citadas, mas inéditas no Brasil. Tendo sido uma clara influência aos quadrinhos underground, essas revistas foram lançadas em formato de bolso em edições precárias, produzidas artesanalmente por artistas anônimos.

Fenômeno parecido aconteceu no Brasil na década de 1960, com os famosos “catecismos” de Carlos Zéfiro. Os chamados “catecismos” eram pequenas publicações impressas em papel de baixa qualidade e em formato de bolso semelhante à literatura de cordel. Eram vendidos de forma camuflada, pois o conteúdo abertamente pornográfico não permitia livre comercialização. Cada revistinha trazia uma história contada em imagens grandes, uma parte da seqüência por página, começava bem comportada em situações corriqueiras do cotidiano, como num consultório médico ou escritório e descambava para o mais explícito erotismo, sem meios tons.

O aspecto tosco de muitas imagens demonstrava a inabilidade do autor, que em certos momentos, devido aos estilos gráficos diferentes de uma a outra história, pensou-se se tratar de vários autores sob o mesmo pseudônimo. As imagens eram, na verdade, decalcadas dos quadrinhos comerciais e adaptadas para as situações eróticas, sendo que muitas eram repetidas em várias histórias. Carlos Zéfiro, que assinava a autoria dos “catecismos”, não passava mesmo de um pseudônimo, do funcionário público Alcides Caminha, revelado pelo quadrinista Ota em 1991 . A clandestinidade era uma estratégia para evitar represálias contra seu emprego no Rio de Janeiro.

A prolífera produção de Carlos Zéfiro fez a cabeça de muitos adolescentes ávidos por sexo num período em que até a revista Playboy era proibida. Os “catecismos” pulularam em todo o país com reproduções não autorizadas ou em novas histórias inspiradas no trabalho de Zéfiro. Este nome tornou-se emblemático e representou um estilo de quadrinhos “marginais” que se contrapunha às bem comportadas produções da época.

Fabiano Barroso (In Bagnariol. 2004, p.130) afirma que “hoje se sabe que muitos dos catecismos publicados e supostamente assinados por Zéfiro, na verdade eram falsos. Zéfiro, que morreria logo após a descoberta, torna-se um dos maiores ícones do quadrinho nacional; seja por sua temática tão peculiar, seja por seu folclórico anonimato”.

 Udigrudi e marginais

O movimento underground estadunidense surtiu um forte efeito na cultura e nos quadrinistas brasileiros. Porém, aqui o protesto não era contra a Guerra do Vietnã, ou até também era, mas centrava-se principalmente na situação política instaurada com a ditadura militar. Havia também o descontentamento com as políticas editoriais do mercado, que fazia vistas grossas aos autores locais preferindo os quadrinhos pasteurizados e baratos distribuídos pelos syndicates.

Sonia Luyten (1985) reforça que os quadrinhos underground brasileiros foram “uma espécie de tubo de ensaio, de experimento para novas formas de desenho, de transmissão de mensagens, uma vez que os problemas básicos continuaram os mesmos: a falta de perspectiva profissional e nenhuma regulamentação governamental que delimitasse uma proteção ao artista brasileiro”.

Nossos jovens quadrinistas e cartunistas foram à luta, organizando-se em torno de centros acadêmicos para a produção de suas revistas “marginais”. Num tom de declarada irreverência, underground aqui se transformou em udigrudi, no melhor jeitinho antropofágico brasileiro. A pioneira dessas revistas foi a Balão, que inspirou inúmeras publicações espalhadas por todo o país. Dessa época temos Uai! e Humordaz, de Belo Horizonte; Ôxente!, de João Pessoa; O Bicho, do Rio de Janeiro, com a mesma turma que editava O Pasquim, além de Vírus e Esperança no Porvir; Ovelha Negra, Boca, Capa e Lodo, de São Paulo; Pivete, Cabramacho e Maturi, de Natal. Em Brasília tivemos Risco; em São Luís saiu Baú de Cartuns; e em Fortaleza, Pau de Arara.

Essas revistas, devido à falta de estrutura econômica e organizacional, duravam poucos números ou nem passavam do primeiro. Era um esforço coletivo sem grande fôlego, mas que traduzia de forma clara a insatisfação dos autores não só com a falta de veículos para publicação, mas com a situação política do país.

Muitos quadrinistas passaram a priorizar a produção de charges, que tinham mais espaço em jornais e salões de humor, ou tiras cômicas, que atuavam no mesmo espaço e conteúdo da charge. No início da década de 1970 sobressaíram as personagens Fradinhos, de Henfil, e Rango, de Edgar Vasques, além de O Pato, de Ciça e As Cobras, de Luís Fernando Veríssimo. Apesar do traço limpo e caligráfico, os Fradinhos notabilizaram-se pelo humor sarcástico e corrosivo, um tanto sadomasoquista e perverso que podia se enquadrar na estética dos quadrinhos underground. Rango expunha a miséria e a fome de forma chocante no espaço das tiras diárias dos jornais. Ciça, com O Pato, fazia a crítica aos desmandos do poder, de forma sutil e poética, bem como Veríssimo, com As Cobras.

Os Fradinhos foram, sem dúvida, os personagens que tiveram mais impacto no período, seja pela verve humorística de Henfil, seja pelos temas abordados. Os Fradinhos eram dois frades, o Baixim e o Cumprido, que contracenavam nas mais inusitadas situações fazendo crítica de costume, social e política. A versatilidade dos personagens, que incorporavam várias personalidades, dependendo do alvo do humor ferino do autor, possibilitava que tratassem de questões em evidência no cenário nacional. Ora o Baixim encarnava uma mulher, ora um índio, um homossexual, um negro, enfim, Henfil botava o dedo nas feridas dos tabus nacionais, acompanhando a luta dos movimentos reivindicatórios das chamadas minorias.

O sucesso dos Fradinhos aconteceu no jornal carioca O Pasquim e confirmou-se com a edição de sua revista pela editora Codecri. A revista do Fradim chegou a ter mais de 30 edições na década de 1970 e embora tenha sido lançada nas bancas com circulação nacional, seguia o mesmo esquema de produção da imprensa alternativa. A revista Fradim trazia em complemento às histórias dos Fradinhos a série Zeferino, com personagens que tratavam da fome, da seca, da miséria e do coronelismo no sertão nordestino.

 Angeli, o fenômeno

Angeli foi protagonista de uma das mais importantes investidas de um quadrinista para a afirmação de seu trabalho autoral. No início da década de 1980 seus personagens já circulavam em tiras diárias no jornal Folha de S. Paulo, mas foi com o lançamento da revista Chiclete com Banana que sua obra expandiu-se pelo país e causou um grande impacto no público. Angeli abria uma nova vertente para os quadrinhos humorísticos brasileiros, ainda condicionados pelo discurso político de oposição à ditadura. Até então as tiras tinham o perfil da charge, calcadas no fato político e nas notícias do cotidiano.

Com personagens caricaturais que representavam os tipos sociais urbanos, Angeli fazia mais a crítica de costumes, criando figuras inigualáveis, como o punk Bob Cuspe, a boêmia inveterada Rê Bordosa, os remanescentes de hippies Wood & Stock, o falso guru Ralah Ricota, dentre tantos outros. A revista Chiclete com Banana, editada à semelhança da revista Mad, a qual fazia concorrência nas bancas, assumia declaradamente o espírito “fanzine”, chegando a incorporar um suplemento ao estilo dessas publicações amadoras.

Uma das ousadias de Angeli foi não ter se dobrado ao mercado editorial. Talvez o mercado, naquele momento, nem ousasse absorver o conteúdo de sua obra, que não raramente resvalava para abordagens pouco convencionais, como o sexo e as drogas. Para a produção da Chiclete com Banana foi criada a editora Circo, por Toninho Mendes. A nova editora agruparia os autores egressos dos fanzines e revistas independentes da década de 1970, como Luís Gê, Paulo e Chico Caruso, Laerte, Glauco, editando coletâneas de tiras em álbuns e revistas. Pela editora Circo foram lançadas as revistas Chiclete com Banana, de Angeli; Circo, mesclando aventuras de autores europeus e brasileiros; Piratas do Tietê, de Laerte; Geraldão, de Glauco e Níquel Náusea, de Fernando Gonsales, numa produção das mais prolíferas já voltadas aos quadrinhos brasileiros.

A revista Chiclete com Banana fez gênero, influenciando a obra de muitos jovens autores nacionais. A forma “marginal” acompanhada de uma produção estruturada iria marcar a nova geração de editores independentes, que buscaram o aperfeiçoamento de suas publicações com vistas a ocupar um espaço dentro de um possível mercado segmentado. Este fenômeno não ocorreu só no país. Após o impacto mundial dos quadrinhos underground, os autores passaram a investir mais em suas obras resguardando seus direitos, associando-se com outros autores e buscando independência dos rígidos ditames do mercado editorial.

Alguns autores nada convencionais

Os quadrinhos underground permitem por natureza toda sorte de criação em termos gráficos e textuais. É a própria expressão do autor, sem condicionantes ou amarras mercadológicas. Como não estão baseados no princípio do lucro e nos impositivos do mercado, os autores sentem-se livres para trabalhar qualquer abordagem que lhes interesse, abrindo um vasto leque de experimentação.

Formando fileira com os batalhadores da editora Circo, Adão Iturrusgarai trouxe um trabalho bastante provocante, sobretudo quando observamos que o meio dos quadrinhos, entre produtores e suas obras, continua um universo majoritariamente masculino, machista e, de certa forma preconceituoso. Os personagens Rock & Hudson formam uma dupla de cowboys gays, derrubando ao mesmo tempo o tabu da homossexualidade nos quadrinhos e o mito do macho construído nas histórias de faroeste. A dupla chegou a ter um longa metragem produzido numa parceria entre Adão e o cineasta Otto Guerra.

Nas tiras diárias o trabalho de Adão mantém a irreverência com a personagem Aline, publicada no jornal Folha de S. Paulo. Aline é uma garota descolada que vive com seus dois namorados. Este é apenas o mote para a construção de situações hilárias e por vezes constrangedoras, para seus namorados, claro! Adão embora tenha um traço caricatural, mas limpo, pouco comum ao estilo underground, faz uma sátira do cotidiano com abordagem de temas pouco convencionais, o que o aproxima do contexto dos quadrinhos “marginais”.

Ao abordar a obra de Lourenço Mutarelli, Edgar Franco (In Guimarães, 2005, p. 53) observa que “seu Expressionismo visceral e contundente começou a impressionar o cenário nacional a partir do lançamento de seu primeiro álbum, o premiado ‘Transubstanciação’. Iconoclasta no texto e no traço, seus roteiros fazem referência a poetas simbolistas como Augusto dos Anjos...”

Mutarelli é considerado por Sidney Gusman e Marcelo Naranjo como o maior nome das histórias em quadrinhos nacionais1. Para eles, seus roteiros atingiram uma notável maturidade com a trilogia protagonizada pelo detetive canastrão Diomedes: O dobro de cinco, O rei do ponto e A soma de tudo.

O primeiro trabalho de Mutarelli foi publicado no número 1 de seu fanzine Over-12, em março de 1988, editado por Marcatti e sua Pro-C Editora. No mesmo ano publicou uma HQ no suplemento Mau, da revista Animal. À época ele havia peregrinado pelas editoras com suas histórias na mão, mas o fato de nunca ter publicado e seu estilo pouco comercial fecharam-lhes as portas, numa clara falta de visão do mercado editorial.

Em entrevista ao sítio Universo HQ em 2001 Mutarelli desabafa: “Mas, assim que eu publiquei o fanzine, que o Marcatti demorou nove meses para imprimir, porque era uma coisa sem pressa, sem grana, começaram a me ligar, na farmácia onde eu trabalhava. O próprio Rogério me contatou, perguntando se eu não tinha tempo pra fazer alguma coisa, e foi isso! 1988 foi decisivo!”2

Fruto de um dos mais expressivos quadrinistas brasileiros, a obra de Marcatti seguiu os preceitos da autoprodução empregados pelos autores dos quadrinhos underground. O domínio de Marcatti ia além da criação dos quadrinhos, chegando aos meios de produção. Ele mesmo imprimia suas revistas em uma impressora offset que adquiriu para a confecção de seus trabalhos. Sendo um artista excepcionalmente criativo e inquieto, chegou a publicar em algumas revistas do mercado, como a Chiclete com Banana, mas que tinham um caráter contracultural.

Marcatti foi o primeiro brasileiro realmente underground a ter seus quadrinhos distribuídos nas bancas de revistas, no mesmo espaço das publicações convencionais. Num empreendimento surpreendente, na década de 2000 a editora Escala produziu a revista Frauzio sem censura ou imposições atenuantes sobre o trabalho escatológico de Marcatti. A indústria cultural afinal se dobrava aos quadrinhos underground ou, em outra leitura, os quadrinhos subterrâneos já não chocavam a sociedade imersa numa realidade perversa. O underground não seria, doravante, mais que um filão mercadológico, dirigido a aficionados, numa clara manifestação de cultura pós-massiva.

Artista multimídia, Marcatti atuava como bluesman e ilustrou capas de CDs de bandas como Ratos do Porão. Suas experimentações gráficas chegaram também à animação, dando movimento a seus personagens. Criou HQ interativas, editadas em CD-Rom, unindo as linguagens tradicionais dos quadrinhos impressos aos recursos da informática, gerando um novo tipo híbrido de quadrinhos denominado por Edgar Franco de HQtrônica (História em Quadrinhos eletrônica).

Sobre Marcatti, Edgar Franco (In Guimarães, 2005, p.53-54) afirma ser um “talentoso quadrinhista que soube canibalizar a influência do Quadrinhos underground norte-americano e criar algo novo, com uma escatologia crua e doentia, trazendo um humor baseado na destruição absoluta dos conceitos de moral e ética que regem as relações sociais”.

Muitos outros autores habituados a publicar em fanzines e revistas independentes seguiram os passos desses quadrinistas que, de certo modo, foram bem sucedidos com a auto-edição chegando às publicações do mercado. No amplo espectro dos quadrinhos underground cabe toda representação expressionista que traduza o universo pessoal de seu autor, desde que contraste com os trabalhos pasteurizados pelos estúdios de produção. Dos quadrinhos viscerais de um Luciano Irrthum, ainda inédito no circuito comercial, ao trabalho onírico e metafísico de Edgar Franco, vale todo tipo de experimentação.

Edgar Franco (2003) é um expoente dos quadinhos poético-filosóficos, gênero pouco convencional onde criou um universo todo próprio, tecendo a simbiose entre ser humano e máquina como centro de sua expressão artística. Edgar lançou vários fanzines, livros e álbuns, seja de próprio punho, seja pela editora independente Marca de Fantasia. Numa parceria com Mozart Couto lançou o álbum BioCyberDrama, pela editora Opera Graphica, considerado um trabalho dos mais significativos para os quadrinhos na atualidade.

Edgar despontaria ainda como grande pesquisador tanto da linguagem dos quadrinhos como de novas tecnologias. Unindo seus dois campos de investigação, criou as HQtrônicas, ou Histórias em Quadrinhos eletrônicas, inserindo animação e uma nova proposta narrativa para as HQ no suporte digital.

Já Luciano Irrthum pode ser considerado como uma grande revelação dos quadrinhos marginais, enfocando de forma virulenta e contundente as neuroses urbanas próprias de seus personagens. Comumente Luciano toma de empréstimo poemas de Augusto dos Anjos e contos de Edgar Allan Poe para transformá-los em quadrinhos carregados visualmente, num traço denso e nervoso que pode chegar a irritar a sensibilidade do leitor comum.

Sem dúvida, o trabalho de Luciano, assim como o de Marcatti, é o mais avesso ao enquadramento nas propostas editoriais da cultura de massa, reservando-se mais apropriadamente a um mercado segmentado, a um público adulto e aberto a novas propostas editoriais. Neste sentido, a obra de Luciano também conta com seu empenho em lançar suas revistas de forma independente e com a iniciativa da editora Marca de Fantasia, que tem investido em novos autores nacionais.

A seguir

Os quadrinhos underground surgiram como uma força devastadora no bojo de uma sociedade em transformação. Com a expansão da contracultura o mundo não seria o mesmo. Muito dos lemas apregoados pelos hippies, pelos movimentos feminista, negro, homossexual foram afinal absorvidos pela sociedade, de forma homeopática, mas aparentemente irreversíveis.

Os quadrinhos perderam a ingenuidade e amadureceram com o choque provocado pelos autores underground, ou “marginais”. Nos Estados Unidos, na França, no Brasil, novas linguagens foram adicionadas ao universo fantástico dos quadrinhos. As questões sociais, políticas, sexuais, racistas, as drogas, a religião, a hipocrisia, nada seria mais tabu ou sujeito a qualquer impositivo legal ou código de ética.

O único impedimento para a popularização dos quadrinhos adultos resta ainda nas políticas editoriais tacanhas do mercado, mais preocupado com o lucro fácil que no investimento e conquista de novos públicos. A isto os quadrinistas também oferecem uma resposta plausível, como o fizeram Angeli e outros autores da editora Circo, criando suas próprias editoras, associações, cooperativas e editando sua obra sem qualquer restrição conceitual ou ideológica.


Referências:

BAGNARIOL, Piero et alli. Guia ilustrado de graffiti e quadrinhos. Belo Horizonte: 2004.

BARROSO, Fabiano Azevedo. História recente dos quadrinhos. In BAGNARIOL, Piero et alli. Guia ilustrado de graffiti e quadrinhos. Belo Horizonte: 2004, p.75-154.

FRANCO, Edgar. Agartha. João Pessoa: Marca de Fantasia, 2.ª edição, 2002.

FRANCO, Edgar & COUTO, Mozart. BioCyberDrama. Vinhedo, SP: Opera Graphica, 2003.

FRANCO, Edgard. Quadrinhos Brasileiros ou Universais? In GUIMARÃES, Edgard (org). O que é História em Quadrinhos Brasileira. Coleção Quiosque nº 12. João Pessoa: Marca de Fantasia, 2005, p.41-57.

GUBERN, Román. Literatura da imagem. Biblioteca Salvat de Grandes Temas, nº 57. Rio de Janeiro: Salvat, 1980.

GUIMARÃES, Edgard (org). O que é História em Quadrinhos Brasileira. Coleção Quiosque nº 12. João Pessoa: Marca de Fantasia, 2005.

IRRTHUM, Luciano. O cãozinho e o crocodilo. João Pessoa: Marca de Fantasia, 2ª ed, 2006.

LUYTEN, Sonia M. Bibe-. O que é História em Quadrinhos. Coleção Primeiros Passos nº 144. São Paulo: Brasiliense, 1985.

SADOUL, Jacques. 93 ans de BD. Paris: Editions J’ai lu, 1989.

SILVA, César. O que é História em Quadrinhos Brasileira? In GUIMARÃES, Edgard (org). O que é História em Quadrinhos Brasileira. Coleção Quiosque nº 12. João Pessoa: Marca de Fantasia, 2005, p.16-26.

 



1 GUSMAN, Sidney & NARANJO, Marcelo. Lourenço Mutarelli: um artista na acepção da palavra. In www.universohq.com, acessado em 23/09/08.

2 MUTARELLI, em entrevista a GUSMAN, Sidney & NARANJO, Marcelo. Idem.

3 comentários:

Cândida Nobre disse...

Olha a coincidência... http://meiafina.pop.com.br/blog/kisskissbangbang/ Abraços,
Cândida

Lucas Milhomens disse...

Interessante nossa última aula, é bom saber que as HQs estão totalmente vinculadas ao momento histórico/social/político que vivemos, no Brasil e fora dele. Ah, e as QHTrônicas são muitíssimo interessantes, seus recursos não lineares e dinâmica audiovisual é demais!
Abraço!

Edgar Franco disse...

Grande Henrique,

Acabo de descobrir o blog "Mídia Radical" com essa matéria soberba! Fiquei muito honrado com a inclusão de meu nome e trabalho!
Parabéns por mais essa iniciativa!
Grande abraço,

Edgar Franco