terça-feira, 16 de setembro de 2008

Os fanzines e os novos suportes imateriais


Henrique Magalhães

Os fanzines – publicações amadoras editadas por aficionados – representam o espaço de reflexão, de crítica e de experimentação; é também uma forma de resistência dos quadrinhos nacionais à indiferença das grandes editoras e à massificação dos quadrinhos estrangeiros. A importância dos fanzines se configura ainda pela difusão e renovação dos quadrinhos, pela formação do público e criação de um es­paço essencial de discussão e avaliação dessa expressão artística.

Em sua origem no país, com o lançamento em 1965 de Ficção, por Edson Rontani, em Piracicaba, São Paulo, os fanzines não eram mais que pequenos boletins mimeografados, utilizando-se de instrumentos rudimentares para impressão. Seu desenvolvimento deu-se com o aperfeiçoamento tecnológico, notadamente com a popularização de outros meios de impressão, como as fotocopiadoras, que provocaram uma verdadeira revolução na produção dos fanzines, abrindo a possibilidade da execução de projetos gráficos mais refinados, incluindo amplamente o uso de ilustrações. Este fator tecnológico favoreceu o surgimento de inúmeros fanzines de quadrinhos, abrindo espaço para o lançamento de publicações autorais e revistas especializadas - com ensaios, críticas e matérias noticiosas.

Dentro de suas possibilidades, os fanzines têm revelado autores que com sorte encontram espaço, ainda que restrito, no mercado, em particular nas pequenas e efêmeras editoras voltadas para a produção nacional. Em paralelo, temos a criação de editoras independentes, fruto do amadurecimento da produção de fanzines e o acesso a novas formas de produção, como a utilização de microcomputadores e impressoras a laser.

Ainda hoje os fanzines têm a maior parte de sua produção realizada sobre o suporte impresso, atuando no espaço menosprezado pelas publicações do mercado. Contudo, alguns artistas e editores independentes têm sabido tirar proveito das novas tecnologias para experimentar outras possibilidades de criação e difusão de suas publicações.

No bojo efervescente da década de 1990, os editores de fanzines buscaram novas técnicas expressivas, sempre fiéis ao princípio motor do meio independente. Gazy Andraus, autor de quadrinhos poéticos e doutor em Ciências da Comunicação pela ECA-USP, criou o que ele chama de Fitazine, que é um programa de rádio elaborado nos mesmos moldes dos fanzines.

O trabalho consiste na gravação em fita cassete de um programa veiculado na Rádio Universitária AM, de Goiânia, em março de 2000. Na peça, Gazy explica seu processo criativo, que surge a partir da audição de músicas. Além de escolher o repertório que lhe serve de inspiração para seus quadrinhos de teor metafísico (Prokofiev, Vivaldi, Canto Gregoriano, Phillip Glass, Black Sabbath, entre outros) ele criou um gênero inusitado de quadrinhos, denominado MusicaHQ, ou HQ Radiofônica. Ele logrou adaptar algumas histórias em quadrinhos para o programa de rádio, em forma de narração pontuada de trilha sonora composta de trechos musicais especialmente montados para ele.

O vídeo também serviu para uma incursão inovadora no Brasil, com a proposta de José Nogueira e José Salles, dois renomados videastas e editores de fanzines. A reunião do meio impresso com o vídeo deu-nos uma série de registros magnéticos classificados como videozine, que viria a ser mais um neologismo para o universo dessas produções independentes.

O meio impresso já não era suficiente para José Nogueira. Atuante editor desde meados da década de 1970, com os fanzines Na Veia, Sem Anestesia, Rock On, Blue Press e particularmente Delírio Cotidiano, José Nogueira já havia feito doze edições de um fanzine inusitado, o Delírio Audiozine, gravado em fita cassete, com entrevistas e divulgação de outras manifestações do meio underground.

Mas o registro em áudio acabou sendo ainda um limite para Nogueira. A sedução do meio audiovisual tornou-se incontornável e em parceria com o videasta Marcelo Bolzan criou o Arquivo Geral Videozine. Com a saída de Bolzan, José Nogueira associou-se ao fanzineiro-videomaker-escritor José Salles, criando a 2 Josés Produções.

O Arquivo Geral Videozine chegou ao número 5 em 2004, sempre trazendo entrevistas com editores de fanzines e músicos de bandas de rock, além de gravação de shows e curtas-metragens realizados pelos próprios editores ou por outros cineastas independentes. O aspecto sujo e artesanal perpassa todo o videozine, deixando evidente que se trata de uma produção amadora, despojada, onde o conteúdo tem mais importância que os requintes estéticos. Este é bem o princípio de boa parte dos fanzines, reforçado, no caso dos videozines, pelo caráter corrosivo e trash de todo o conjunto de sua produção.

Malgrado o aspecto inovador desses fanzines, a produção do Arquivo Geral Videozine ressente-se do uso mais ousado de sua linguagem, que poderia se prestar a experimentações estéticas que extrapolassem a narrativa própria da reportagem televisiva. De todo modo, é muito interessante o registro audiovisual, a exposição da figura de personalidades do meio underground que até então só eram conhecidas por intermédio de textos – entrevistas, artigos -, da edição de seus próprios fanzines e pela expressão gráfica dos quadrinhos.

Numa breve amostragem do conteúdo, na quarta edição do Arquivo Geral Videozine temos entrevistas com o editor Renato Rosatti, dos fanzines Astaroth, Juvenatrix e Carnage, assim como Laerçon Santos, que além de editar os fanzines Boca Suja e Bestagem, é muito conhecido pelos irreverentes personagens The Paraibanos de Subúrbio e Pato de Botas. Nesta edição, os 2 Josés participam como atores no curta-metragem de ficção O Homem à procura de um roteiro, que também é escrito por José Nogueira e dirigido por José Salles.

No vídeo temos ainda a presença de Eduardo Manzano, também conhecido no meio por seus fanzines e quadrinhos. Este clima de camaradagem é bem particular da produção dos fanzines e é o que dá ao Arquivo Geral Videozine a identidade com as produções do gênero.


A Nova era da informática


A década de 1990 tem na revolução telemática seu maior ícone. A popularização dos micro-computadores veio praticamente aposentar as velhas máquinas datilográficas. Com os programas gráficos cheios de recursos e ferramentas, os fanzines com sua estética tradicional de recortes e colagens vieram dar lugar a publicações que apresentavam uma programação visual mais limpa, aproximando-se da estética das revistas do mercado e em alguns casos, criando novas feições que depois seriam utilizadas pelas publicações comerciais.

Para alguns leitores e editores, a frieza da informática gerou uma reação que se fez sentir no início, num apelo à pureza dos fanzines sujos e artesanais, características de uma linguagem pessoal que, para eles, não deveria ser maculada. Mas, boa parte dos editores logo descobriu as enormes possibilidades oferecidas pela editoração eletrônica e preferiu utilizá-la de forma conscienciosa, tirando proveito de ferramentas que viriam simplificar sobremaneira o trabalho de edição.

Não era mais necessário reduzir e ampliar textos e ilustrações em fotocopiadoras, nem recortar e colar manualmente. Com toques num teclado poder-se-ia operar milagres em composições gráficas, desde que se dominasse as ferramentas. Toda essa facilidade à disposição de qualquer um é certo que gerou algumas extravagâncias. A mistura indiscriminada de tipos, retículas, frisos e outros elementos gráficos, em certas publicações veio mais dificultar a apreensão da mensagem que enriquecer o visual.

Como toda nova tecnologia, os computadores pessoais tiveram que ser domados, para sua adequada utilização. Com a progressiva familiaridade no manuseio das novas ferramentas, tivemos como resposta alguns belos fanzines editados com a competência e bom gosto de verdadeiros programadores visuais. Dentre tantos que surgiram com um projeto gráfico caprichado, citamos Panacea, de José Mauro Kazi; QI, de Edgard Guimarães; Independente ou Morte, de Marcelo Marques e Chá com Cannabis, de Lanusse Castro, David e Bruno Sales. 

O computador logo deixou de ser apenas um instrumento para a produção dos fanzines e se tornou seu próprio veículo. Foi em 1995 que as produções independentes começaram a explorar as muitas possibilidades da informática. O “fanzine digital” Rhereck Magazzine, lançado pelo cartunista Célus, circulou apenas em disquete, para ser lido na tela do computador. Este fanzine tinha como tema principal as histórias em quadrinhos, mas fazia um passeio por música, fantasias sadomasoquistas e cartum.

Célus fez apenas 50 cópias de seu fanzine, mas contou com uma das estratégias dos usuários de computadores para sua maior difusão: a distribuição pelos leitores de cópias não autorizadas. A vantagem do fanzine digital, para Célus, é que o cartunista pode utilizar as cores, o que dificilmente acontece nas publicações impressas, já que quase sempre são reproduzidos em fotocópias.[1] É certo que temos as copiadoras em cores, mas o custo das cópias torna qualquer publicação independente impraticável.

Outra inovação incontornável da informática, que chegou ao Brasil em meados da década de 1990, foi a Internet. Os fanzines virtuais, ou e-zines, deixaram de lado as ferramentas rudimentares, como tesoura, cola e fotocopiadoras, para se proliferar rapidamente pela rede de computadores.

Para o jornalista Tom Leão, com a grande rede, a mensagem pode ser passada mais rapidamente, para mais pessoas, para o mundo todo: por aqui, há os que assumem o formato newsletter, informativos enviados regularmente por e-mail, como o hilário Ackzine, da banda Ack; os que existem no papel e na rede, como o Brujeria e o El Espresso Cucaracha; e os feitos especialmente para o mundo virtual, entre eles Aquário, E-fanzine, Esfera, London Burning, Electric head etc.[2]

Podemos observar no comentário do jornalista a diversidade de temas e abordagens sugeridos pelos títulos dos fanzines eletrônicos. Assim como os fanzines impressos, os e-zines vêm se desenvolvendo no seio de grupos com as mais diversas expressões artísticas, que incluem a cena musical, os quadrinhos, a moda, os modos de vida, os passatempos, a literatura. O importante é se ter o que dizer, premissa imprescindível dos mais autênticos fanzines.

Mas, devemos também considerar um outro aspecto da inserção dos fanzines na mídia eletrônica. Muitos dos fanzines impressos têm sido abandonados devido à falta de apoio institucional, que igualmente mal chega às produções amadoras teatrais, musicais, de dança etc. Faltam eventos que promovam as novas expressões artísticas e falta interesse dos órgãos oficiais em seu desenvolvimento.

Laerçon Santos, editor do fanzine Boca Suja, afirma que o resultado disso é o sumiço de alguns fanzines, enquanto outros migram para a mídia eletrônica tornando-se páginas de Internet para baratear os custos; com isso, o leitor que não tem computador fica privado de mais um veículo que lhe dava prazer:

“Já me disseram que o futuro dos zines será uma tediosa e horrível tela de computador, aí eu diria: o cidadão que não tem grana nem pra mandar selos para receber um zine terá que descolar grana pra comprar um computador só pra ver fanzines? Que dureza! E cá entre nós, o pessoal nerd que não sai da frente de um computador jamais vai querer ficar vendo fanzines na telinha, imagino que o mesmo vá procurar algo mais complexo, detalhado, sites ultraprofissionais etc e tal, no meu modo de ver, fanzines são algo feito para ser folheado, lido e guardado com todo carinho.”[3]

Didier Bourgoin, diretor da Fanzinothèque de Poitiers, a referência máxima dos fanzines na França, pensa nessa mesma direção. Para ele, o fanzine é a publicação impressa: “Podemos pensar que a chegada da Internet significa a morte do mundo dos fanzines. Para mim, Internet é um instrumento de comunicação econômico, rápido, prático e sobre tudo complementar ao papel; no momento não a vejo substituindo o livro, o álbum.”[4]

Bourgoin considera que a Internet tem sua especificidade, e sua utilização deve considerar isso. A experiência dos e-zines é interessante por causa do princípio da interatividade. Na Fanzinothèque a Internet é usada para difundir as informações, por meio de um catálogo apresentando os fanzines de forma esquemática (com capa, sinopse, editorial etc).

Contudo, Bourgoin lembra que pouca gente ainda está equipada, e se o estão, ainda não têm o "reflexo" internet: “Penso que vamos criar mui proximamente um fórum de discussão. Isto permite dialogar, estar mais perto da gente.”[5]

Se como meio a Internet ainda gera polêmicas, como instrumento ela pode ser bem utilizada para esvaziar as gavetas dos novos autores de quadrinhos. Como ondas sazonais, os quadrinhos undergrounds estão sempre vindo à tona, depois dos refluxos que separam gerações. Desde a década de 1970, com os cartunistas da revista Balão, a autoprodução tem sido responsável pela afirmação de alguns renomados autores nacionais, a exemplo dos irmãos Caruso e da geração da Circo Editorial, com Angeli, Laerte, Glauco, Adão Iturrusgarai, Toninho Mendes, Fernando Gonzáles e Luís Gê.

A Internet é, se não a protagonista, ao menos a facilitadora de uma nova onda de cartunistas, que criam seus sítios e blogs para a divulgação de seu trabalho. Ganham evidência no momento as revistas cariocas Tarja Preta, F e Mosh!; Ragú, de Recife; Quase, de Alegre, ES; Areia Hostil, de Rio Grande, RS e Dez Pãezinhos, de São Paulo. O dado relevante a se notar é o estabelecimento de uma eficiente rede de contatos pessoais, promovida pela agilidade da Internet.

Os jornalistas Alexandre Matias e Diego Assis, ao discorrerem sobre o tema, afirmam que as publicações consagram uma geração que, sem traumas, adicionou o mouse e o monitor na paleta de suas opções de estilo.[6] Na mesma reportagem, Renato Lima, editor de Mosh!, afirma: “A Internet faz com que cheguemos ao público interessado mais rápido, e a parte gráfica mais acessível estimula a criação dessa novas revistas, por menor que seja a tiragem. É a filosofia punk do ‘faça você mesmo’ de volta.”

O entusiasmo gerado pela Internet, como se vê, não se limitou ao encantamento das novas tecnologias. A rede de comunicação eletrônica possibilitou um intercâmbio mais intenso e uma difusão mais ampla das novas produções. Autores que não viam a possibilidade de publicação passaram a produzir seu próprio fanzine e divulgá-lo por intermédio da Internet, alcançando uma resposta bem mais satisfatória que o intercambio postal convencional. Maxx, do fanzine Tarja Preta, afirma que “está rolando um sentimento geral de publicação independente, o pessoal está vendo que não vale a pena ficar esperando um grande contrato, o negócio é começar a editar sozinho.”[7]

Este entusiasmo florescente e a profusão de novas publicações vieram respaldados pelo incremento de novas estratégias de produção. Não resta dúvida que o meio independente tem amadurecido com vistas à formação de um mercado paralelo. Para sedimentar uma nova revista não basta mais o empenho personalista de um autor em broto. É preciso ter os pés no chão e pensar fórmulas para criar publicações mais elaboradas e projetos editoriais mais consistentes.

Algumas ações são pensadas para manter as revistas em funcionamento, como a inserção de personagens em camisetas e a racionalidade do processo de produção. Há autores ou grupos de cartunistas que buscam o recurso das leis de incentivo à cultura, como ocorre com João Lin e Massaro e sua revista Ragú. De mesmo modo agem Wellington Srbek e este autor, que já publicou com o recurso dessas leis alguns álbuns pela editora Marca de Fantasia.

Mas, o mais importante é que se vislumbre a independência do processo editorial. Lobo, editor de Mosh!, revela: “Como a gente já conhece bem a realidade dos quadrinhos no Brasil e sabe que ela é casca grossa, resolvemos criar um projeto anti-falência, em que eu e o Renato pudéssemos bancar do próprio bolso o prejuízo durante uns dez números... O formato de bolso foi decisivo neste momento – além de facilitar a venda da revista em shows e festas.”[8] A revista Mosh! tem uma tiragem espetacular de 5000 exemplares e conta com mais de 200 pontos de venda em todo o Brasil.


O suporte digital


A revolução tecnológica trouxe novas experiências de publicação, a exemplo do fanzine Slam! Em julho de 1997, Slam! ganhou uma versão on-line e em 1998/1999, a gravação de um CD-Rom, tornando-se o primeiro fanzine brasileiro de quadrinhos a contar com uma versão digital. Slam!, editado por Rogério Velasco, trata-se de uma revista em quadrinhos eletrônica que apresenta o trabalho de mais de trinta artistas que publicaram em cinco anos no fanzine homônimo impresso. No CD, são 360 páginas de HQ, sendo 170 coloridas, com material dos maiores nomes do underground brasileiro e do exterior, a exemplo de Estados Unidos, Inglaterra, Finlândia, Holanda etc.

Essa passagem do Slam! impresso para o meio eletrônico não foi fácil, como relata Rogério Velasco – ou Rovel – a Nemo Nox, em entrevista ao sítio Esfera – revista de cultura online:

“Comecei com e-zines logo no início da febre da internet aqui no Brasil, e descobri que não era muito simples fazer um site como eu gostaria. Acabei me desgastando demais para atualizar meu primeiro e-zine, o SLAM Net, e abandonei a idéia depois de uns quatro meses e umas vinte atualizações. Depois surgiu o Lagartixa, que é muito mais fácil de atualizar, apesar de ter de colorir as histórias. Menos atualizações e uma resposta satisfatória, apesar de não ser ainda a ideal. Parece que achei o caminho.”[9]

Entre os meios impresso e eletrônico, Rovel aponta vantagens e desvantagens. Para o meio impresso, no limite, basta um mimeógrafo para se fazer um fanzine, que pode ser produzido em qualquer recôndito do país. O processo é cansativo, pois implica em imprimir, colocar em envelope, selar e manter os contatos, mas por vezes compensa, e muito.

Para se fazer um webzine, no entanto, é necessário o acesso a um grau sofisticado de tecnologia. Se por um lado, para editá-lo basta um fim de semana e não custa tanto avisar os leitores sobre o lançamento, por outro, a desvantagem é sua pouca mobilidade. Como lembra Rovel, não dá pra lê-lo em qualquer parte.

Rovel coloca ainda a questão do público, que tanto atormenta os editores dos fanzines impressos. Enquanto o fanzine em papel tem um público fechado, em torno de 100 leitores, sendo que ele estima que 95 têm seu próprio fanzine e apenas fazem permuta, o e-zine é aberto, tem um público que cresce a cada dia.[10]

Apesar de dispor de um meio que oferece possibilidades técnicas diversificadas, como a utilização de textos e imagens, movimento e som, a versão em CD-Rom do Slam! restringiu-se ao convencional, à mera transposição da versão impressa para o CD. Para Rovel, a intenção era fazer uma coletânea de seus fanzines, passando para o novo meio o que já existia, para que servisse apenas de arquivo e memória.


Os fanzines invadem a rede


Com a Internet, tornou-se possível uma comunicação imediata entre editores e leitores por intermédio das salas de discussões e grupos de estudos. O correio eletrônico praticamente substituiu a correspondência via postal, acelerando a troca de informações. Os sítios ou fanzines eletrônicos abriram novas possibilidades de editoração e criações estéticas, com a inserção de cores, som e animação.

Mestre em Multimeios pela Universidade de Campinas, SP e pesquisador de novas tecnologias aplicadas às histórias em quadrinhos, Edgar Franco avalia que o desenvolvimento da Internet aponta para uma ruptura da hegemonia das grandes editoras do mercado, pois a web passou a funcionar como um espaço democrático onde quadrinhistas e editores podem divulgar e promover a venda de seus títulos, rompendo com um dos principais problemas logísticos das editoras independentes. Para ele, antes da Internet, os editores muitas vezes eram obrigados a fazer grandes tiragens de suas revistas se quisessem vê-las distribuídas, o que inviabilizava muitos projetos editoriais destinados a pequenos segmentos do mercado: “Muitas iniciativas de publicação de pequenas tiragens para venda online têm tido êxito, indicando uma nova tendência para o mercado de HQs impressas em todo o mundo”.[11]

Essas novas ferramentas, no entanto, apresentam duas faces, uma sedutora e outra desafiadora. Com a expansão da Internet, muitos dos editores que faziam fanzine impresso ensaiaram a migração para o meio eletrônico, com a criação de sítios. Alguns fizeram simplesmente a transposição do impresso para a tela do computador; outros preferiram criar novos títulos, tirando proveito das possibilidades instrumentais e estéticas do novo meio.

Um exemplo de fanzine impresso que ganhou sua versão eletrônica foi O Espírito - Informativo de Quadrinhos do Ceará[12]. Este pequeno informativo de quatro páginas já utilizava bem os recursos da informática, com uma programação visual limpa e equilibrada. Não demorou e chegou à versão eletrônica, enviada para uma lista de leitores por e-mail.

No entanto, O Espírito é um exemplo de como a transposição para o novo meio, num primeiro momento, pode não acrescentar muito à publicação de origem, sendo a versão impressa muito mais rica tanto no aspecto textual quanto no gráfico. Um dos critérios que se deve considerar sobre as publicações na rede eletrônica é que ela tem seus limites e suas próprias regras, de acordo com o estágio de desenvolvimento tecnológico.

Um dos limites é a ainda baixa velocidade da transmissão de dados, que obriga os programadores visuais a utilizar o mínimo de imagens ou reduzir sua resolução ao máximo. Quanto menor o tamanho da imagem mais fácil será sua transmissão e a abertura das páginas na tela do computador.

Discorrendo sobre os quadrinhos na rede, Edgar Franco levanta esta questão, apontando perspectivas para a superação dos limites técnicos: “Um dos principais empecilhos para o avanço das HQs nas redes telemáticas, a baixa velocidade de carregamento de arquivos e imagens, aos poucos vai mostrando ser apenas uma barreira temporária, já que provedores de acesso mais velozes estão popularizando-se a cada dia, enquanto novos programas e formatos de compactação proporcionam a geração de arquivos cada vez mais leves e de fácil carregamento. A evolução tecnológica também é grande na área dos softwares e plug-ins para a Internet, gerando ambientes cada vez mais amigáveis para que os artistas criem seus trabalhos”.[13]

Por outro lado, dado a fadiga que a leitura na tela do computador provoca, os textos normalmente tendem a ser curtos, sintéticos, apresentados em pequenos blocos e com informações esquematizadas. Dessa forma, não é adequado se reproduzir um fanzine impresso no meio eletrônico mantendo-se sua diagramação e densidade gráfica. A saída tem sido a busca de um formato próprio para a edição desses fanzines. Cada novo meio traz consigo uma série de possibilidades que podem e devem ser exploradas tendo como meta a criatividade e a eficiência do processo de comunicação.


A experimentação no campo virtual


A cada dia, novos fanzines eletrônicos, e-zines, webzines, sites, sítios, páginas ou revistas eletrônicas surgem no espectro sedutor da internet. Alguns são criados como projetos originais. Outros, como adaptações ou versões eletrônicas de publicações impressas.

Marcelo Garcia viria a criar o Nanquim, em 1999, sendo, originalmente, um sítio para a divulgação de seus quadrinhos, além de textos sobre a arte. Nanquim transformou-se num sítio de quadrinhos autorais, cujo objetivo era tecer comentários a respeito de quadrinhos que circulavam fora do circuito comercial e tratavam de temas menos superficiais que o dos super-heróis, por exemplo. A participação do leitor era valorizada, por meio de opiniões, críticas, sugestões e colaborações de artigos e histórias em quadrinhos.

Os quadrinhos independentes, mas com pretensões profissionalizantes, não poderiam abrir mão da Internet para a difusão de seus autores e obras. Antônio Luiz Ramos Cedraz aproveitou bem esse espaço para projetar seus quadrinhos além da esfera regional. Com sua produção sediada em Salvador, mas já tendo dado os primeiros passos no mercado editorial por intermédio de algumas editoras do Sudeste, foi com a criação do sítio na Internet que seus quadrinhos ganharam ampla divulgação.

Cedraz é autor de personagens que realçam as culturas regional e nacional e tem feito considerável sucesso, sobretudo em seu estado. A publicação de revistas e livros com as personagens, em particular Xaxado e sua turma, vem associada a inserções no meio publicitário, tiras diárias, revistas para-didáticas, revistas de passatempos, selos e outros produtos derivados.

Para a sedimentação de sua obra, Cedraz trabalha o sítio na Internet com caprichado projeto visual, que vai além da mera reprodução de seu trabalho. O sítio tornou-se um meio à parte, informativo e formativo, com destaque para os elementos mais autênticos da cultura popular. Sem dúvida, esse novo produto, favorecido pelo aspecto dinâmico da Internet, veio enriquecer e projetar ainda mais o trabalho do autor baiano.[14]

Edgar Franco e Flávio Calazans também fariam seus sítios pessoais[15]. Calazans, Doutor pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, nos apresenta um sítio biográfico, o Calazans – Midiologia e Artes, que é, na verdade, um portfólio com a apresentação das principais linhas de sua obra, em particular voltada para as pesquisas sobre a inserção de mensagens subliminares na mídia.

Calazans há muito vem pesquisando sobre as tecnologias subliminares, tendo lançado uma obra voltada a sua utilização na propaganda e nas mídias.[16] É dele também um projeto pioneiro de pesquisa em computador ligado à rede, usando o sistema brasileiro Videotexto, via Embratel. O Videotexto (também chamado na França de Minitel e que foi amplamente usado antes do advento comercial da Internet) é um sistema de comunicações telemático – que significa a combinação de telecomunicação com informática -, que emprega a conexão intermídia do telefone com o computador e a televisão para o envio de mensagens visuais.

Para Calazans, a principal característica do videotexto é a possibilidade de interatividade, de se obter respostas dos usuários por intermédio de diálogos, rompendo o monólogo dos meios de comunicação de massa convencionais.[17] O videotexto permite a relação direta do usuário, que pode interferir na mensagem que recebe pela rede. Contudo, essa facilidade de interação foi pouco explorada em nosso país, cujo sistema foi mais utilizado para a veiculação de jornais eletrônicos. Poucos programas se desenvolveram que promovessem o intercâmbio, com exceção dos Videopapos, canais abertos a vários usuários para conversas informais.

Para desenvolver novos aspectos de suas pesquisas, Calazans preparou um projeto de instalação de subliminares para ser veiculados no programa editorial Videozine, produzido por Paula Prata Vandenbrande no Laboratório de Telemática da Unisantos (Universidade Católica de Santos, SP). O programa foi efetivamente colocado na rede em março de 1991. A proposta de Calazans era conseguir que o usuário respondesse aos estímulos do programa, via teclado, aumentando sua interatividade e tirando-o da passividade comum aos usuários do sistema.

A boa acolhida do público transformou o programa Videozine em um Mural Eletrônico, editando material enviado espontaneamente pelos usuários. Além dos acessos terem crescidos na ordem de 90% em relação ao mês anterior, o espaço de memória do programa teve que triplicar para atender a demanda do público, chegando a influenciar a programação de outras emissoras.[18]

Edgar Franco segue em outra direção. Com uma pesquisa acadêmica bem fundamentada, ele parte para experimentações no campo da telemática, transformando suas histórias em quadrinhos em uma mídia híbrida, com animações e recursos sonoros. A esta nova mídia ele daria o nome de Hqtrônicas, ou histórias em quadrinhos eletrônicas, numa simbiose da linguagem da arte seqüencial com os novos meios de produção, utilizando os programas gráficos de computação.

Para demonstrar seus conceitos, Edgar elaborou uma história em quadrinhos de inspiração filosófica - temática que percorre toda sua obra - com os recursos da informática. Este trabalho foi apresentado como produto final de Mestrado. Suas pesquisas o levaram a trilhar o caminho das tecnologias de ponta e mesmo tomar conhecimento de experimentações que vão além das artes gráficas, chegando a propostas avançadas de interferência da tecnologia na esfera biológica.

Edgar Franco é um prolífico criador de histórias em quadrinhos poéticas, onde desenvolveu ao longo dos anos um peculiar universo onírico e metafísico, pleno de questionamentos a respeito do homem e da alma. Sua evolução não só temática, mas também gráfica, se deu pelo exercício constante e publicações no meio independente, seja em seus próprios fanzines, seja nos diversos títulos do gênero que circulam em todo o país.

Um bom exemplo de sua produção encontra-se no álbum Biocyberdrama[19], realizado em parceria com o consagrado desenhista Mozart Couto. Para situar o leitor em seu universo futurista, Edgar tem o cuidado de apresentar um resumo de sua pesquisa, num texto de introdução e outro de conclusão, em apêndice à HQ. É muito interessante essa preocupação acadêmica de Edgar. Além de tornar acessível ao leitor um conhecimento bastante específico, dá sustentação teórica aos seus quadrinhos, tornando verossímil um universo fantástico e por demais excêntrico.

São raros os autores que têm essa preocupação. As histórias em quadrinhos de ficção científica em sua maioria ou exigem a cumplicidade cega do leitor ou caem nos clichês que beiram a banalidade. Edgar busca trabalhar com as previsões e projeções baseadas na realidade, desenvolvidas por estudiosos e artistas de vanguarda de todo o mundo.

Além de seu trabalho gráfico – Edgar publicaria ainda os álbuns Agartha e Transessência, pela editora independente Marca de Fantasia – o ensaísta também viria à cena, com textos acadêmicos apresentados em congressos de Comunicação. Um deles, História em Quadrinhos e Arquitetura, seria editado pela mesma Marca de Fantasia.

Em paralelo ao trabalho editorial, é possivelmente irreversível o interesse de Edgar pelos novos caminhos da tecnologia. É justamente em seu sítio que ele partilha com os leitores de forma mais direta suas novas experiências com os quadrinhos eletrônicos.

Do outro lado do Atlântico, mas visceralmente ligada à divulgação de nossas publicações, a seção Bedelho, de Fernando Vieira, dedicada ao recenseamento de fanzines e quadrinhos deixaria as páginas impressas do jornal Barlavento, da cidade portuguesa Portimão, para invadir as telas dos computadores. Bedelho na NET reproduziria com o mesmo vigor a idéia do intercâmbio entre editores de fanzines promovida por Fernando, tão importante para a difusão de nossos meios impressos.

André Diniz, que já vinha fazendo um destacável trabalho com a editora Nona Arte, com revistas independentes de excelente conteúdo e apresentação gráfica, investe firme na criação de um abrangente sítio dedicado aos quadrinhos. Aos poucos, as edições impressas foram dando vez a um trabalho quase que totalmente voltado para a veiculação na Internet, incluindo a versão virtual de suas publicações e mais centenas de páginas inéditas de quadrinhos de autores nacionais.

Tércio Strutzel, editor do fanzine Paralelo, considera que o sítio da editora Nona Arte vem revolucionando o modo de fazer, ler e distribuir quadrinhos: “Um dos primeiros a publicar páginas de HQ no formato PDF para download, o site tem conseguido um número significativo de visitas diárias de leitores que podem optar por ler as HQ’s on-line ou baixá-las para ler depois ou imprimir. Já são mais de 180 para download, e também tiras atualizadas freqüentemente”.[20]

Mas o Nona Arte não é feito só de quadrinhos. O sítio transformou-se numa verdadeira fonte de recursos e ferramentas para quem deseja editar seu próprio fanzine virtual, como diversos tipos de letras para os quadrinhos e apostilas dos cursos de programas para a construção de páginas na Internet, além de dicas de sítios que podem auxiliar os artistas. Outra seção importante é a que apresenta os endereços de editoras, artistas, lojas, fanzines e notícias sobre quadrinhos.

Estes não são mais que alguns poucos exemplos de editores de fanzines que migraram para o meio eletrônico, não necessariamente abandonando o meio impresso. Grandes lacunas restam abertas, a merecer um enfoque mais dirigido, a contar o Grupo Reverbo, de Natal; Joacy Jamys e o Singularplural; Paulo Emmanuel e o Zambra; Wally Vianna, e o Logotipo; José Carlos Ribeiro, do PolítiQua; José Carlos Correia Marques, o Zecarocero; Daniel HDR; Emir Ribeiro; Marco Muller; Moacy Torres. Enfim, uma listagem completa dos e-zines surgidos nos últimos anos seria exaustiva e impossível de ser realizada, dado à volatilidade do meio e a velocidade com que essas páginas aparecem e desaparecem da rede.

Alguns sítios especializados em quadrinhos surgiram no espaço da Internet sem, contudo, ser oriundos dos fanzines. São sítios informativos, que trazem resenhas e salas de discussão; apresentam trabalhos de novos autores e notícias que interessam aos aficionados da arte seqüencial. Bons exemplos destes sítios são o Bancazine, de Recife, e Universo HQ, de São Paulo.

Bancazine é feito por autores ligados a um grupo muito atuante no meio dos quadrinhos pernambucanos. A passagem de alguns dos articulistas do Bancazine pelo grupo PADA, que edita a revista Prismarte, e pelo Movimento Pernambucano de Quadrinhos foi fundamental para apurar o senso crítico e ampliar o contato com outros editores da região. José Valcir, Bruno Alves, Milson Marins praticam um jornalismo ao mesmo tempo informativo e reflexivo, criando um endereço incontornável para quem deseja se manter atualizado sobre o mundo dos quadrinhos.

O Universo HQ é a referência absoluta como sítio informativo de quadrinhos, capitaneado por Sidney Gusman. O sítio, muitas vezes agraciado como o HQ-Mix, um dos maiores prêmios da cena dos quadrinhos brasileiros, traz centenas de resenhas das mais diferentes publicações do gênero, seja revista, fanzine, ou álbum, nacional ou internacional. Sem dúvida, o Universo HQ é um precioso acervo de tudo o que circula ligado a esta arte, além de noticiar ainda os concursos e eventos. Os artigos, atualizados diariamente, têm a assinatura do próprio Sidney Gusman e também de Marko Ajdaric e Marcelo Naranjo. Este é um trabalho monumental de cobertura da produção comercial, mas que dá uma oportuna e generosa visibilidade ao meio independente, com seus fanzines e revistas.

Ainda podemos destacar o sítio Alanmoore[21], de José Carlos Neves, que aborda a obra do roteirista de quadrinhos inglês Alan Moore, bem como traz uma série de entrevistas com nomes importantes de diversas áreas, com especial enfoque nos quadrinhos; e Enciclozines, enciclopédia sobre fanzines criada por Joás Dias de Lima, que mantém uma página virtual com a biografia dos editores de fanzines brasileiros.

Ressalte-se, também, a importância do meio acadêmico para a pesquisa e o estudo das histórias em quadrinhos. Além do Grupo de Trabalho da Intercom dedicado ao tema, um núcleo de estudos tem se destacado na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.

Trata-se do Núcleo de Pesquisas em Histórias em Quadrinhos (NPHQ), coordenado pelo professor Dr. Waldomiro Vergueiro. O Núcleo disponibiliza uma revista eletrônica na Internet, a Agaquê – Revista eletrônica especializada em Histórias em Quadrinhos e temas correlatos. Em sua quarta edição, a revista traz artigos sobre a reinterpretação da história da independência de Cuba por meio dos quadrinhos do personagem cubano Elpídio Valdés, sobre os comix norte-americanos, além da comunicação sobre a utilização da linguagem das histórias em quadrinhos para elaboração de um texto acadêmico e resenhas sobre publicações da área.[22]


Verso e reverso


Em dezembro de 1999 saía a edição impressa do fanzine Pitomba, com o subtítulo História da ilha de Fortuna, criado por Marcelo Garcia, Rovel, Antonio Éder, Luciano Lagares, José Aguiar, Hector Lima, Abs Moraes, Jairo Rodrigues e Léo Andrade, alguns dos quais nomes que já se firmavam na produção de quadrinhos independentes brasileiros. Mas, afinal, o que viria a ser Pitomba e o universo ficcional onde se passavam as histórias em quadrinhos, a Ilha de Fortuna?

Esta é a pergunta que abre o editorial do primeiro número do fanzine, que procura situar o leitor na proposta da publicação. A resposta deveria, por sugestão dos editores, ser encontrada no website que é a versão digital do fanzine Pitomba - ou o Pitomba é a versão em papel do website? Os próprios editores se questionavam - pra conhecer o lugar e ler mais quadrinhos.[23]

Pitomba viria se colocar na contramão do caminho traçado por outras publicações. Enquanto a maioria dos jornais e revistas fazia a transição do meio impresso pra o eletrônico, Pitomba configurava-se como um produto derivado deste meio, procurando adaptar para o papel os elementos originalmente criados para o meio virtual.

O fanzine Pitomba, ao contrário dos outros veículos impressos, que em geral eram mais abrangentes em conteúdo que o veículo eletrônico, perdia em qualidade para o sítio da Ilha de Fortuna. Enquanto o fanzine tinha poucas páginas, era impresso em preto e branco e não trazia quase nenhuma matéria textual, o sítio apresentava os mesmos quadrinhos do fanzine, só que em cores. “Além disso, o site tem material que não sai no fanzine, como os textículos escritos pelos próprios habitantes de Fortuna e um mapa da ilha, com descrições detalhadas de cada região”.[24]

Depreende-se que o sítio tinha mais importância que o fanzine. Como o sítio foi criado como veículo original, e não uma adaptação de outro veículo, fora concebido lançando mão de várias de suas possibilidades, como a interatividade e a utilização de cores, ainda pouco acessível às publicações impressas independentes. A necessidade, então, de se fazer um fanzine impresso inspirado no sítio pode ser compreendida pelo vínculo de seus editores com aquele meio de publicação, onde tem importância o hábito de colecionismo, da materialidade do objeto de culto, pouco praticável no meio eletrônico. 

A mesma atitude já havia sido tomada com o sítio CyberComix, voltado às histórias em quadrinhos, que se antecipou à revista impressa homônima. Além de quadrinhos, o sítio tinha uma seção de entrevistas com desenhistas e roteiristas famosos, como Laerte e Angeli; mantinha um espaço de intercâmbio com os leitores, que podiam publicar seus quadrinhos; trazia um canal de notícias sobre o mundo dos quadrinhos, fóruns para debates e sala de bate-papo. A revista foi lançada em São Paulo, em maio de 1998, com tiragem de 20 mil exemplares, distribuídos em bancas e assinaturas.[25]

O CyberComix, apesar de ter sido um sítio ligado a uma revista comercial, estando fora, portanto, de nosso objeto de estudo, foi interessante por dar destaque ao universo dos quadrinhos brasileiros abrindo espaço para a crítica e a reflexão sobre o meio. Da mesma forma, contou com a adesão de muitos dos novos autores oriundos dos fanzines, que aproveitaram a oportunidade para desfilar seus trabalhos ao lado de grandes figuras dos quadrinhos nacionais.


Um longo passo adiante


A história dos fanzines, não só no Brasil, tem sido vertiginosa em transformações, adaptações a crises e experimentações. De pequenos boletins mal impressos chegamos, em poucos anos, ao refinamento do álbum, passando pelas revistas que em nada devem às publicações comerciais. Isto é uma demonstração inquestionável do amadurecimento de uma geração formada pelo empenho empreendedor, que cresceu inventando formas e meios para expor sua criação.

Foi com a edição de fanzines que alguns dos nomes consagrados de nossos quadrinhos iniciaram sua carreira. Muitos ainda continuam lutando por um espaço para publicação, persistindo na auto-edição e buscando novas fórmulas para a difusão de sua arte. Dentre esses novos caminhos está a criação de editoras independentes, que vêm se consolidando e apontando para a formação de um outro nicho de mercado.

O impulso dado pelas novas tecnologias para o incremento da produção de quadrinhos e fanzines não poderia ser descartado. Toda uma onda de novos autores surgiu com a expansão de acesso aos microcomputadores e ainda mais com o advento comercial da Internet. Velhos fanzineiros voltaram a investir na comunhão de suas paixões utilizando as facilidades de comunicação do meio eletrônico. Por meio de correio eletrônico, boletins, revistas e sítios, alguns dos aguerridos e sempre atuantes editores de fanzines passaram a experimentar novas linguagens utilizando as mais dinâmicas ferramentas, além de estabelecer contatos diretos com um outro público, mais amplo e diversificado que o dos pequenos boletins impressos.

Certamente o meio impresso não desaparecerá, como permanecem até hoje o jornal, o livro, a revista, o boletim associativo, o panfleto, enfim todo o universo de Gutenberg que resiste há mais de 500 anos. Contudo, há que se vislumbrar as enormes possibilidades – para não dizer infinitas – que nos apresentam os meios eletrônicos, que apenas engatinham em sua revolução. Este é o grande diferencial de nossa época. A este desafio, de trilhar caminhos desconhecidos e surpreendentes, os fanzines se jogaram desde a primeira hora, fazendo jus a sua inquietação.

Cabe aos editores de fanzines não só acompanhar essa trajetória de transformações, mas continuar como agentes imperativos e dinâmicos de sua história, criando caminhos de interseção entre as mídias eletrônicas e sua influência sobre os meios impressos. Por outro lado, o aprofundamento das pesquisas e estudos acadêmicos sem dúvida contribui para a compreensão desse novo tempo, tão presente, mas tão voltado para um futuro cada vez mais imediato e imprevisível.


Referências bibliográficas

BENJAMIN, Roberto. Folkcomunicação no contexto de massa. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2000.

LUYTEN, Sonia M. Bibe (organizadora). Histórias em Quadrinhos: Leitura crítica, 2ª ed. São Paulo: Edições Paulinas, 1985.

LUYTEN, Sonia M. Bibe. O que é História em Quadrinhos, Coleção Primeiros Passos, 144. São Paulo: Brasiliense, 1985.

CALAZANS, Flávio Mário de Alcântara (organizador). As histórias em quadrinhos no Brasil: teoria e prática, Coleção GT Intercom nº 7. São Paulo: Intercom, 1997.

CALAZANS, Flávio Mário de Alcântara. Propaganda Subliminar Multimídia, Novas Buscas em Comunicação, v. 42. São Paulo: Summus, 1992.

FRANCO, Edgar & COUTO, Mozart. Biocyberdrama, Coleção Opera Brasil nº 16. Vinhedo, SP: Opera Graphica Editora, 2003.

GUIMARÃES, Edgard. Fanzine. Brasópolis, MG: edição do autor, janeiro de 2000.

MAGALHÃES, Henrique. O que é fanzine, Coleção Primeiros Passos, 283. São Paulo: Brasiliense, 1993.

MAGALHÃES, Henrique. O rebuliço apaixonante dos fanzines. João Pessoa: Marca de Fantasia/Editora Universitária UFPB, 2003.

MAGALHÃES, Henrique. A nova onda dos fanzines, Coleção Quiosque, nº 7. João Pessoa: Marca de Fantasia, 2004.

SEMIÃO, Antônio Éder et alli. Tudo que você sempre quis saber sobre quadrinhos mas sua mamãe relutava em lhe responder. Curitiba: Edição do autor, abril de 1996.


Artigos

Andando na contramão: O site que virou revista, Francisco Itacarambi. Imprensa n.º 128. Maio de 1998, p.84.

Cartunista lança ‘zine digital’ com HQ e reportagens sobre música. Folha de S. Paulo. São Paulo: 17 de julho de 1995, p.6-3.

Didier Bourgoin de 'La Fanzinothèque' de Poitiers, Didier Bourgoin em entrevista a Henrique Torreiro. O Fanzine das Xornadas, n.º 5. Ourense, Galicia, Spain: outubro de 1998, p.27-28.

Girinos no lago, Tom Leão. Megazine, suplemento de O Globo. Rio de Janeiro: 20 de novembro de 2000, p.18.

Internet decreta fim da “gaveta” de HQ. Alexandre Matias e Diego Assis. Folha de S. Paulo. São Paulo: 2 de setembro de 2004, Ilustrada, p.E3.2.

Hqtrônicas: Histórias em Quadrinhos e Hipermídia, Edgar Franco. Quadreca, nº 12. São Paulo: Com-Arte, dezembro de 2001, p.19.

Panorama dos quadrinhos subterrâneos no Brasil, Edgar Franco. In CALAZANS, Flávio Mário de Alcântara (organizador). As histórias em quadrinhos no Brasil: teoria e prática, Coleção GT Intercom nº 7. São Paulo: 1997, p.51-65.

A questão da produção, divulgação e distribuição de edições independentes, Edgard Guimarães. In CALAZANS, Flávio Mário de Alcântara (organizador). As histórias em quadrinhos no Brasil: teoria e prática, Coleção GT Intercom nº 7. São Paulo: 1997, p.66-80.

Rogério Velasco em entrevista a Nemo Nox. Esfera – revista de cultura online, acessado em 3 de março de 1999.

Tyli-Tyli: A revista de quadrinhos filosóficos do Brasil, Gazy Andraus. In CALAZANS, Flávio Mário de Alcântara (organizador). As histórias em quadrinhos no Brasil: teoria e prática, Coleção GT Intercom nº 7. São Paulo: 1997, p.81-91.


Fanzines

 

O Espírito nº 8. Fanzine de Daniel Brandão, JJ Marreiro e Geraldo Borges. Fortaleza: fevereiro de 2002.

O Fanzine das Xornadas, nº 5. Ourense, Galicia, Spain: outubro de 1998.

Pitomba nº 1. Fanzine de Marcelo Garcia e outros. Santos: dezembro de 1999.

Pitomba nº 2. Fanzine de Marcelo Garcia e outros. Santos: fevereiro/março de 2000.

  

Sítios Internet

 

http://fanzine.at/brujeria (Bruno Privatti)

http://sites.uol.com.br/calioppe (Gian Danton)

www.areiahostil.com.br (Lorde Lobo)

www.calazans.ppg.br (Flávio Calazans)

www.esfera.net/hq (Revista de cultura online)

www.fzimbres.com.br (Fábio Zimbres)

www.geocities.com/rainforest/vines/7630 (José Carlos Ribeiro)

www.geocities.com/ritualart.geo (Edgar Franco)

www.geocities.com/soho/3402 (Marcelo Garcia)

www.jornal-lagos.ultimate.pt (Fernando Vieira)

www.lagartixa.net (Rogério Velasco)

www.marcadefantasia.com.br (Henrique Magalhães)

www.nonaarte.com.br (André Diniz)

www.omelete.com.br

www.singularplural.cjb.net (Joacy Jamys)

www.xornadas-bd.go.to (Henrique Torreiro)

www.zaz.com.br/cybercomix (CyberComix)


[1]. CÉLUS, citado em Cartunista lança ‘zine digital’ com HQ e reportagens sobre música.Folha de S. Paulo. São Paulo: 17 de julho de 1995, p.6-3.

[2]. LEÃO, Tom. Girinos no lagoMegazine, suplemento de O Globo. Rio de Janeiro: 20 de novembro de 2000, p.18.

[3]. SANTOS, Laerçon. Falando da nova ediçãoBoca Suja nº 26. São Paulo: Ano VI, julho 2004, p.2.

[4]. BOURGOIN, Didier em entrevista a Henrique Torreiro. Didier Bourgoin de 'La Fanzinothèque' de Poitiers.  O Fanzine das Xornadas, n.º 5. Ourense, Galicia, Spain: outubro de 1998, p.27-28.

[5]. Idem.

[6]. MATIAS, Alexandre e ASSIS, Diego. Internet decreta fim da “gaveta” de HQFolha de S. Paulo. São Paulo: 2 de setembro de 2004, Ilustrada, p.E3.2.

[7]. Idem.

[8]. Idem.

[9]. VELASCO, Rogério em entrevista a Nemo Nox. Esfera – revista de cultura online, acessado em 3 de março de 1999.

[10]. Idem.

[11]. FRANCO, Edgar. Hqtrônicas: Histórias em Quadrinhos e HipermídiaQuadreca nº 12. São Paulo: Com-Arte, dezembro de 2001, p.19.

[12]O Espírito é editado por Daniel Brandão, JJ Marreiro e Geraldo Borges. O n.º 8, de fevereiro de 2002, foi produzido em impresso e via correio eletrônico.

[13]. FRANCO, Edgar. Hqtrônicas: Histórias em Quadrinhos e HipermídiaQuadreca nº 12. São Paulo: Com-Arte, dezembro de 2001, p.20.

[15]. FRANCO, Edgar: www.geocities.com/ritualart.geo; CALAZANS, Flavio:www.calazans.ppg.br

[16]. CALAZANS, Flávio. Propaganda Sublimnar Multimída; Novas Buscas em Comunicação, v. 42. São Paulo: Summus, 1992.

[17].  CALAZANS, Flávio. O Net subliminar-telemático. Acessado emhttp://www.calazans.ppg.br, em 15 de fev. 2005.

[18]. Idem.

[19]. FRANCO, Edgar e COUTO, Mozart. Biocyberdrama. São Paulo: Opera Graphica, 2003.

[20]. STRUTUZEL, Tércio. Paralelo, nº 6. São Paulo: abril de 2004, p.18.

[21]. www.alanmooresenhordocaos.hpg.ig.com.br.

[23]. Pitomba, nº 1. Santos, SP: dezembro de 1999, p.3.

[24]. Em editorial de Pitomba, nº 2. Santos, SP: fevereiro/março de 2000, p.4.

[25]. ITACARAMBI, Francisco. Andando na contramão: O site que virou revistaImprensan.º 128. Maio de 1998, p.84.

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